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Curitiba amanheceu gelada, neste 16 de junho de 2054, como nos bons antigos invernos, com direito a um céu bem azul e restos de geada. No contraste da grama fria do Parque Barigui, capivaras ensaiam movimentos e soltam vapores úmidos das narinas. Na pista de caminhada que divide a estreita faixa da clareira deste imenso bosque com os mais diversos miniveículos elétricos, curiosos cidadãos saudosistas madrugaram para desfrutar deste fenômeno atmosférico que há três décadas não ocorria.

Tubulões rubros-envidraçados, artérias pulsantes do transporte coletivo, com suas cápsulas superpovoadas movidas a eletricidade, sinuosamente afloram do solo em trechos das avenidas arborizadas, a coletar passageiros sonolentos e estupefatos.

O raro frio não modifica a sisudez desses curitibanos que lentamente aparecem nas sacadas dos prédios a tratar suas hortas e jardins, uma mania particularmente curitibana que, graças à lei de incentivo ao "pequeno jardim urbano doméstico", transborda natureza na verticalidade rigorosa e adensada desta capital.

O vento gelado não impede de se caminhar pelas ruas, atividade aprazível desde a proibição de se circular na área central com veículos poluentes. Antigos estabelecimentos da Rua das Flores abrigam as mais diversas atividades culturais, entre pequenos teatros e muitos cinemas de rua, bem como um comércio peculiar e muito procurado, com lojas de objetos e móveis usados, brechós com certificados de sustentabilidade e os preciosos sebos, agora extensões de redes internacionais de trocas de livros.

Bem mais adiante, na imensa borda desta metrópole, os quilômetros de moradias acumulam-se em verticalidades justificadas que rememoram algumas das máximas do arquiteto franco-suíço Le Corbusier que ditava, no início do século 20, uma cidade com o solo mais livre quanto possível – agora, no entanto, sem a premissa de separação da cidade em funções, mas com o enaltecimento dos terraços-jardins. Essa parte da metrópole mais faz lembrar as sonhadas cidades-jardim do utopista Ebenezer Howard propostas no fim do século 19, ainda que o ranço da desigualdade social esteja longe de ser dissipado.

Essa acumulação de séculos é lembrada não só em ideias, como também nas ruas centrais respingadas de passado que se evidencia nos históricos edifícios solenemente preservados – pequenas casas, antigos armazéns, ecletismos e modernismos de concreto bruto cientes de sua modesta exemplaridade curitibana expõem sua raridade e antiguidade para certificar aos cidadãos que o passado mora junto ao presente para legitimar o futuro. Estas frágeis edificações disputam a atenção na paisagem urbana com desproporcionais condomínios verticais neoneoclássicos surgidos num modismo inaugurado no início do século 21 que contagiou a classe média e com os bem-vindos recentes edifícios sustentáveis e neorracionalistas que trouxeram uma merecida tranquilidade visual.

Um solitário Ulisses desperta nessa manhã de 16 de junho de 2013 – confuso do sonho, veste-se rapidamente e sai à rua para se certificar em que época está. Atravessa, desconfiado, a verdejante Praça Osório e nas sombras oscilantes procura por inexistentes hortas brotadas da preocupação comunitária... mais além, a passagem de um ônibus expresso lotado secretamente o entristece. Na rua Fernando Moreira, avista o delicado Edifício Itália, do arquiteto Elgson Gomes, e uma frágil alegria o invade ao reconhecer nessa urbe as potencialidades de um futuro respaldado em cuidados e reconhecimentos. Absorto, recolhe uma latinha de refrigerante que, erradamente, espera na calçada de petit-pavé e a lança calmamente na lixeira. Esta cidade é a sua e com uma sensação de pertencimento continua seu vagar.

Cleusa de Castro, arquiteta e urbanista, é professora da UFPR e da PUCPR.

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