• Carregando...

Quando Pedro Álvares Cabral chegou ao Brasil, seja para evitar as calmarias ou por roteiro adrede preparado, encontrou os indígenas concordando ou se desentendendo em 1.300 línguas diferentes, quiçá se digladiando no tacape e na borduna, em defesa de direitos adquiridos.

Alguns séculos depois, em 1945, quando cheguei a Castro, para meu primeiro trabalho, na ocasião de ser apresentado ao prefeito Vespasiano Carneiro de Mello, fui saudado com uma expressão no mínimo intrigante: "Como vai essa bizarria?" Nunca havia me considerado bizarro, nem mesmo sabia seu real significado, quando se tratava de gente. Respondi que estava bem, tinha feito boa viagem, gostado da cidade sem, entretanto perguntar sobre a bizarria dele, se é que também tinha esse predicado. Tal saudação ouvi inúmeras vezes ao curso de uma carinhosa amizade que se estendeu até o seu falecimento, em abril de 1960.

No dia seguinte, com o presidente do estado, Moysés Lupion, ao perguntar-lhe "como vai?", o ilustre governador respondeu-me meramente: "Como Deus é servido", expressão que nunca mais ouvi em mais de 60 anos de vida. Não ouvi, mas também não a esqueci, procurando-a e encontrando-a na versão de inúmeras personagens do passado, tão usada e abusada a ponto de se tornar adequada a uma série de oportunidades e circunstâncias as mais diversas.

Segundo o mestre João Manoel Simões, trata-se de uma legenda lusitana comum em seu próprio lar, quando a mãe ao despedir-se dos filhos, abençoava-os com a expressão, vai Manoel, como Deus é servido. Já a vi emprega da para significar uma vida difícil, árdua, sofrida.

Encontrei-a em Camões, em meio aos seus versos e em Cervantes, no diálogo entre Sancho e sua esposa, Teresa, a revidar: eu falo como Deus é servido. O próprio Don Quixote adverte o Sancho: "Não entres em discussão, eu falo como Deus é servido". O nosso Duque de Caxias em pleno fragor de uma batalha envia uma mensagem à esposa: " Sou fatalista e sempre desprezei a morte, porque sei que nada se pode fazer senão o que a Deus for servido".

A saúde dos brasileiros vai bem, obrigado. Os ricos morrem cheios de tubos e os pobres, como Deus é servido. Até nos requerimentos oficiais a legenda tinha seu emprego: "Nós abaixo-assinados, como Deus for servido, requeremos ao eminente desembargador...".

Miguel Couto, Machado de Assis, Coelho Neto, Fernando Sabino, Eça de Queirós e Camilo Castelo Branco não deixaram de usar a expressão: "Vou indo como Deus é servido, antes vivo do que amortalhado"; "Faço meus versos como Deus é servido" e "Arranchamos no retiro e cada um se acomodou como Deus é servido".

Uma expressão profusamente usada nos princípios do século passado, um quebra-galhos a deixar tudo nas mãos de Deus, ora completamente submersa, como tantas outras de outrora. Não se pode equipará-la ao se Deus quiser, pois Ele quer sempre o melhor. Como Deus é servido é a predominância do poder divino.

Na mesma ordem de idéias é habitual ironizarmos nossos irmãos de além-mar onde quem não é Manuel é Joaquim ou vice-versa. Com isso esquecemos dos nossos Joões e Marias que por aqui florescem, talvez em homenagem a São João Baptista, ou Evangelista, e a Maria Santíssima. Em percurso de norte a sul no estado de Minas à procura de Joões e suas histórias de vida, os pesquisadores encontraram centenas de indivíduos com esse nome, que era também o do entrevistador e seu avô.

Segundo Pettersen, João e Maria eram encontrados nos subterrâneos da sociedade. São pretos, brancos, amarelos, guerreiros anônimos perdidos na multidão em busca do feijão de cada dia e o encosto de cada noite. Eles mourejam num mundo diverso, mexendo argamassa nas construções ou lavando roupa suja nos tanques dos caminhos. Trabalham edificando em prol de um futuro melhor que nunca lhes pertencerá. E dentro de tais enredos o escritor presta uma homenagem a esses obreiros de nosso progresso erguendo cidades e catedrais no vigor de seu sangue e de seus músculos forjados na genética de nossa miscigenação racial. Tais João perdem o sobrenome para se tornarem o João barbeiro, o pintor, o latoeiro, o verdureiro da dona Benta.

Os Joões de nossas searas têm outro gabarito, se estendendo em clãs ilustres na ciência, na política e na sociedade: João Cândido Ferreira, João Vieira de Alencar, João Xavier Vianna, João Moreira Garcez, João de Oliveira Franco, João de Deus Freitas Neto e aqui e agora o senador João de Matos Leão, meu vizinho e amigo.

Ao evoluir da linguagem na voz do povo, muitas palavras vão se perdendo com o tempo e a época: "baita," a significar, estupendo, grandioso; "levado da breca", travesso, turbulento; " na casa de mãe Joana" coisa bagunçada, sem dono; "chove mas não molha" quem muito fala e pouco faz; "peleia", peleja, briga; "prenda", no Rio Grande do Sul, moça gaúcha; "vá aperrear o cão com reza," vá embora e não amole. As expressões são próprias de determinadas regiões. As gaúchas se referem mais a cavalos, rodeios, laços e pialadas; as pernambucanos mais às coisas do cotidiano e de suas lidas; as paraibanas igualmente, ainda com mais humor.

Tradicionalmente um grupo de amigos se reúne todos os domingos de manhã, das 10h às 12h30 no Café Lucca, a fim de um "bate-papo" informal, a esmo, sem assunto determinado. Dessa turma tenho a honra de participar em diálogos alegres e acalorados, que sucedem, como Deus é servido.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]