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 | Henry Milleo/Gazeta do Povo
| Foto: Henry Milleo/Gazeta do Povo

Eu não acredito em fantasmas, mas os vejo o tempo todo. A cada dia as redes sociais estão mais assombradas. Entre os mais de 40 milhões de usuários mortos do Facebook, uma conhecida minha, falecida há dois anos, tem uma página que permanece bem ativa: dezenas de pessoas que a conheciam continuam postando lembranças e emojis de coração, falando com a morta como se ela estivesse apenas tão longe ou tão perto quanto qualquer um de nós hoje em dia, em algum lugar deste mundo, por trás de outra tela.

Segundo o Centro de Pesquisas Pew, quase 20% dos norte-americanos acreditam ter “visto ou estado na presença” de uma alma penada; mais de 30% afirmam “ter feito contato com alguém que já morreu”. Pesquisas antigas sugerem que esses números se mantêm constantes em todas as gerações. O fascínio com o mistério é passatempo nacional desde que Washington Irving celebrava o “prazer temeroso de ouvir histórias de campos, riachos, pontes e casas assombrados”.

Agora, porém, parece que vivemos algo diferente: hoje até os céticos vivem na presença dos mortos, os desencarnados e o ilusório, sombras na internet não menos influentes por não serem reais.

A tecnologia possibilita essas interações estranhas e esse é o paradoxo da presença generalizada das maravilhas científicas na nossa vida: levamos supercomputadores futuristas no bolso, mais eles não nos tornam menos supersticiosos. Somos suscetíveis a trapaças e truques, presos nas nossas tendências medievais arraigadas. De fato, parecem fazer o contrário, recolocando nossa credulidade em qualquer instrumento novo que prometa preencher o vazio que nos separa daquilo ou de quem perdemos.

Os fantasmas de uma cultura são moldados por suas máquinas

A presença maciça do smartphone como ponto de acesso para o campo do cognitivo coletivo que alguns chamam de noosfera – que vem da palavra grega nous, que significa “mente” – talvez torne inevitável nossa preocupação cada vez maior com as forças invisíveis. Só que esta não é a primeira vez que avanços radicais na tecnologia abriram a porta do sótão para encontros imaginários; embora naturalmente encaremos os espíritos em termos místicos, os fantasmas de uma cultura são igualmente moldados por suas máquinas.

Quando Samuel Morse enviou a primeira mensagem telegráfica entre Baltimore e Washington, em 1844 – o versículo bíblico “Eis o que Deus realizou” –, entre seus defensores mais entusiasmados estavam aqueles que acreditavam que tais missivas podiam ser transmitidas não só através de grandes distâncias, mas de e para o além.

Em meados do século 19, a ascensão do espiritismo, a crença de que os vivos podem se comunicar com os mortos, estava ligada aos fantásticos desenvolvimentos tecnológicos da época. Primeiras espíritas reconhecidas nacionalmente, Leah, Kate e Maggie Fox de Hydesville, Nova York, comparavam explicitamente suas interações com os mortos com impulsos elétricos transmitidos por um fio. “O telégrafo de Deus veio antes do de Samuel F.B. Morse”, dizia a mais velha das irmãs.

Os adeptos logo criaram um jornal chamado The Spiritual Telegraph (“O Telégrafo Espiritual”), “dedicado à ilustração das relações espirituais”, enquanto outro famoso espírita, Andrew Jackson Davis (conhecido como o “Profeta de Poughkeepsie”), afirmava que as sessões de contato (séances) eram mais eficazes quando os participantes estavam ligados por um fio de cobre.

Antes do telégrafo submarino transatlântico, Davis sugeriu que a maneira mais rápida de enviar mensagens para o outro lado do oceano seria através de um sistema de “central telefônica espiritual”, na qual os novaiorquinos vivos mandariam uma nota para seus mortos, que a transmitiriam aos ingleses que já passaram desta para melhor e, por sua vez, a revelariam aos londrinos vivos. Diz a lenda que o fundador do New-York Tribune, Horace Greeley, ficou tão entusiasmado com essa ideia que começou a procurar correspondentes espíritas. Infelizmente para ele, porém, percebeu-se na época que “os espíritos se recusavam terminantemente a servir à imprensa”.

Leia também:  Filosofar é aprender a morrer (artigo de Edimar Brígido, publicado em 6 de março de 2015)

O telégrafo não foi o único instrumento usado como estimulante pouco provável das “relações espirituais”; com a compreensão do funcionamento da eletricidade em todo o país, os que acreditavam nas forças invisíveis alegavam que ela servia de base para suas crenças. Os médiuns se denominavam “baterias”, essenciais para o fornecimento da energia necessária para enviar comunicados às distâncias mais longas de todas. A fotografia também, com sua promessa de produzir imagens revelando detalhes escondidos ao olho nu, oferecia aos caçadores de fantasmas uma ferramenta nova e poderosa.

Como resultado do número inédito de óbitos causados pela Guerra Civil, uma verdadeira obsessão por imagens espectrais tomou conta do país quando o fotógrafo William Mumler disse que podia registrar as almas dos mortos com sua câmera. Primeiro em Boston e depois em Nova York, ele conseguiu convencer muita gente que às sessões em seu estúdio compareciam os espíritos dos maridos, filhos e amigos dos clientes pagantes.

Mumler acabou preso por fraude – e o fato, amplamente noticiado, pôs o espiritismo em xeque, tanto no tribunal como perante o público. Embora ele tenha sido pego em flagrante vendendo uma “foto de espírito” a um policial de Nova York, seu advogado bolou uma defesa engenhosa, apelando tanto para as aparições precedentes de espíritos, registradas na Bíblia, como para a fé crescente na capacidade da tecnologia de realizar o impossível.

“O registro dessas imagens é um novo recurso da fotografia, que ainda está engatinhando, mas que aos poucos e lentamente vai progredindo, rumo a uma maior precisão no futuro, também exigindo maior perfeição, tempo e um conhecimento científico das forças que a operam”, afirmou o advogado de Mumler. Depois da absolvição surpreendente, Mumler continuou com suas atividades e tirou sua “foto” mais famosa: um retrato de Mary Todd Lincoln posando com o suposto espírito do presidente assassinado.

Leia também:Onde está Deus quando sofremos? (artigo de Peter Wehner, publicado em 5 de abril de 2017)

A crença de que os mortos assumiam formas que ainda não tinham sido descobertas não era uma visão alternativa, mas sim uma posição religiosa bastante comum. Algumas estimativas feitas por volta de 1860 afirmavam que o número de norte-americanos simpatizantes do espiritismo chegava a 10 milhões, ou seja, um terço da população.

A velocidade com que as novas tecnologias passaram a fazer parte do cenário do século 19 ajuda a explicar o fenômeno: o telégrafo, a eletricidade, a fotografia, tudo era novo. Tudo era assombroso, tudo parecia totalmente fantasioso – até que, de repente, estava em todo lugar, dificultando para muita gente a identificação do que era a maravilha genuína e o que era apenas enganação e firula.

A confusão espiritual gerada por tais inovações durou várias décadas. Em 1843, quando Morse pediu ao governo federal apoio para o telégrafo, um congressista rebateu dizendo que, se o governo repassasse verba para a exploração do envio de mensagens elétricas, deveria também investir na pseudociência do Magnetismo. Em 1869, um juiz da Suprema Corte estadual e vários fotógrafos legítimos testemunharam a favor de Mumler, observando que ainda não tinha sido provado que a fotografia não podia cumprir o que ele alegava fazer.

Nos nossos tempos, também assombrados pela tecnologia, vale a pena se perguntar como a vida, on-line e off-line, será afetada por descobertas e manipulações muito além do que se prevê hoje. É torcer para que os futuros cidadãos da noosfera não se deixem levar pelas enganações digitais atuais e as desmascarem com a mesma facilidade de uma fotografia espiritual. Até lá, é esperar que nossa capacidade de detecção de entidades inventadas se equivalha e supere nosso talento para criá-las.

Peter Manseau é curador de história religiosa norte-americana do museu Smithsonian e autor de “The Apparitionists: a tale of phantoms, fraud, photography, and the man who captured Lincoln’s ghost”.
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