• Carregando...
 | Carlos Becerra/Bloomberg
| Foto: Carlos Becerra/Bloomberg

Em 23 de janeiro, 61 anos depois de o ditador Marcos Pérez Jiménez ter sido deposto, os venezuelanos mais uma vez se reuniram para celebrar a democracia.

Pérez Jiménez subiu ao poder de forma fraudulenta, com a ajuda da Assembleia Constituinte, em 1953. Seu mandato deveria terminar em 1958, mas, em vez de promover eleições livres e transparentes, foi reeleito não democraticamente, após organizar um plebiscito para estender sua administração, ao fim de 1957. Como consequência dos protestos que se seguiram e de uma ruptura com os militares, o general deixou o país e a Venezuela recuperou sua liberdade em 23 de janeiro de 1958.

Mais uma vez enfrentamos o desafio de restaurar nossa democracia e reconstruir a nação, desta vez em meio a uma crise humanitária e à manutenção ilegal da presidência por parte de Nicolás Maduro. Há uma escassez severa de remédios e alimentos; o sistema público de saúde implodiu. Temos uma das taxas de criminalidade mais altas do mundo, agravada pela repressão federal brutal sobre os manifestantes.

Essa tragédia resultou no maior êxodo da história da América Latina, com 3 milhões de venezuelanos hoje vivendo no exterior.

Meu juramento não pode ser considerado “autoproclamação”. Não o fiz por conta própria, mas de acordo com nossa Carta Magna

A reeleição de Maduro, em 20 de maio de 2018, foi ilegítima, fato reconhecido pela maior parte da comunidade internacional. Seu mandato de seis anos deveria terminar em 10 de janeiro – e o fato de se manter no cargo reforça a usurpação, de sua parte, da presidência.

Minha ascensão como presidente interino está baseada no Artigo 233 da Constituição venezuelana, segundo o qual se, ao início de um novo mandato, não houver chefe de Estado eleito, o poder é concedido ao presidente da Assembleia Nacional até a realização de eleições justas. Foi por isso que o juramento que fiz, em 23 de janeiro, não pode ser considerado “autoproclamação”. Não o fiz por conta própria, mas de acordo com nossa Carta Magna.

Eu tinha 15 anos quando Hugo Chávez subiu ao poder, em 1998. Na época, vivia no estado de Vargas, que dá para o Caribe. Em 1999, chuvas torrenciais causaram enchentes que mataram milhares de pessoas. Perdi diversos amigos. A importância de ser forte ficou gravada na minha alma desde então. Percebi que, se quisesse um futuro melhor para meu país, teria de arregaçar as mangas e dedicar a vida ao serviço público.

Quando ficou claro que a Venezuela estava apontando para o totalitarismo sob Chávez, entrei para o movimento estudantil. Acabei me envolvendo com a política local e fui eleito como deputado para representar meu estado na Assembleia Nacional, em 2015.

Leia também: A Venezuela reage (editorial de 23 de janeiro de 2019)

Leia também: A ditadura venezuela e seus cúmplices brasileiros (editorial de 24 de setembro de 2018)

A mesma geração de irmãos e irmãs de luta dessa época se mantém ao meu lado hoje, quando venezuelanos de todas as vertentes políticas estão se unindo no esforço de tentar restabelecer a democracia. É nosso dever reinstaurar a normalidade, a fim de construirmos o país próspero e avançado com que todos sonhamos – mas primeiro temos de recuperar nossa liberdade.

Um padrão se desenvolveu no governo de Maduro: quando a pressão aumenta, o primeiro recurso é reprimir e perseguir. Sei disso porque as marcas das balas de dispersão disparadas por membros das Forças Armadas – em protestos pacíficos, em 2017 – permanecem no meu corpo, um preço irrisório comparado aos sacrifícios feitos por meus compatriotas.

Sob o governo Maduro, pelo menos 240 venezuelanos foram mortos em marchas; há 600 prisioneiros políticos, incluindo o fundador do meu partido, Leopoldo López, detido há cinco anos. Quando as táticas repressivas provam ser inúteis, Maduro e seus capangas dissimuladamente propõem, então, o “diálogo”. Só que nos tornamos imunes a esse tipo de manipulação. A usurpação do poder era a única opção que lhes restava.

Considerando-se que o governo Maduro não pode reter o poder legitimamente, nossa estratégia se desdobra em três: primeiro, proteger e apoiar a Assembleia Nacional como o último reduto da democracia; segundo, consolidar o apoio da comunidade internacional, principalmente do Grupo de Lima, da OEA, dos Estados Unidos e da União Europeia; terceiro, levar nosso caso ao povo, baseados no direito que ele tem à soberania.

Definimos três pontos de concordância: fim da usurpação; um governo de transição; e eleições livres

Mais de 50 países já me reconheceram como presidente interino ou à Assembleia Nacional como a autoridade legítima da Venezuela. Já dei início ao processo de nomeação de embaixadores e à localização e recuperação de bens nacionais vinculados ao exterior.

Entre os políticos de oposição, definimos três pontos de concordância como parte de nossa jornada rumo à democracia: fim da usurpação; um governo de transição; e eleições livres. Essa fase intermediária exigirá apoio de setores militares cruciais. Já fizemos reuniões clandestinas com membros das Forças Armadas e de segurança; oferecemos anistia a todos que foram inocentados da acusação de crimes contra a humanidade. A retirada do suporte a Maduro é essencial para a mudança de governo, e a maioria daqueles que estão no governo concorda que a situação atual do país é insustentável.

Há um amplo consenso entre os venezuelanos a favor da mudança: 84% da população rejeita o regime de Maduro. Temos organizado reuniões abertas pelo país para que as pessoas possam falar livremente sobre o momento político atual. Na semana passada, em Caracas, cidadãos dos bairros mais carentes, tidos como redutos chavistas há tempos, foram para as ruas protestar – e saíram de novo no dia 23, com o pleno conhecimento de que poderiam ser brutalmente reprimidos.

Para conseguirmos retirar Maduro do poder com um mínimo de violência, toda a Venezuela deve se unir para exigir o fim definitivo de seu regime. Precisamos do apoio dos governos, instituições e indivíduos pró-democracia de todo o planeta. É absolutamente vital encontrarmos uma solução eficaz para a crise humanitária, da mesma forma que temos de abrir caminho rumo à compreensão e à reconciliação.

Nossa força – e a salvação da Venezuela – está na nossa união.

Juan Guaidó é presidente interino da Venezuela e presidente da Assembleia Nacional do país.
The New York Times Licensing Group – Todos os direitos reservados. É proibido todo tipo de reprodução sem autorização por escrito do The New York Times.
0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]