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Engana-se quem acredita que o conflito entre Rússia e Ucrânia tenha se iniciado em 24 de fevereiro de 2022.
Engana-se quem acredita que o conflito entre Rússia e Ucrânia tenha se iniciado em 24 de fevereiro de 2022.| Foto: Bigstock

Engana-se quem acredita que o conflito entre Rússia e Ucrânia tenha se iniciado em 24 de fevereiro de 2022. Engana-se igualmente quem acredita que as consequências da guerra vão impactar apenas o território europeu e, se muito, o território russo. A verdade é que as tristes mazelas de uma guerra trespassam seu tempo e espaço. Porém, para compreender a necessidade de tais ações, precisamos, primeiro, apresentar a realidade do conflito que, como já dito, remonta a um tempo passado.

O conflito armado no leste ucraniano iniciou-se em março de 2014, quando as forças governamentais ucranianas lutaram contra os separatistas, apoiados pela Rússia, pelo controle de grande parte das regiões fortemente industrializadas – e riquíssimas em jazidas de carvão – de Donetsk e Luhansk, na região de Donbas. Desde então, mais de 14 mil pessoas já perderam suas vidas e um terço do território fora deixado nas mãos dos separatistas.

Entre setembro de 2014 e fevereiro de 2015, Rússia, Ucrânia, França e Alemanha assinaram várias intenções de acordo, chegando a formalizar os chamados Protocolos de Minsk, que vieram, momentaneamente, a interromper o movimento de tropas e reduzir significativamente o combate na região. Ocorre que, diferentemente do que se imagina, os acordos nunca foram implementados e os combates tornaram-se constantes na região, com cerca de 75 mil soldados ocupando os 420 quilômetros da fronteira na área que, frise-se, era densamente povoada (segundo dados do Freedom House, cerca de 6,5 milhões de pessoas moravam na região antes da invasão).

Também é importante destacar que boa parcela da população ucraniana – algo em torno de 17% a 22% – autodeclarava-se já russa. Ainda assim, nenhum número teria o condão de justificar uma invasão russa, pensando na soberania territorial da Ucrânia e, principalmente, nas atrocidades que hoje estão sendo perpetradas em solo ucraniano, a mando do governo russo.

Não obstante, a integração política da região com a Rússia perpetrou a tentativa de assegurar o extermínio da cultura ucraniana da região: ambas as regiões de Donetsk e Luhansk aboliram o ucraniano como língua estatal em 2020, sendo que as escolas locais retiraram a história da Ucrânia de seus currículos. Ademais – já prospectando um problema migratório latente – tornou-se muito mais difícil viajar para outros locais da Ucrânia através da linha de controle. Desde então, prevalece algo chamado de “Doutrina Donbas Russa”, que enaltece ser a região uma terra russa e que os Estados criados após a dissolução da União Soviética são projetos anti-russos, como no caso da Ucrânia.

Obviamente, à luz do que se acompanha desde 1989, quando então ruíram as bases da URSS, os Estados que se estabeleceram flertaram muito mais com o Ocidente do que com as pretensões russas, o que, inegavelmente, trouxe uma insatisfação para o governo Putin. Frise-se, por outro lado, que em 2017 a Ucrânia cortou todos os laços econômicos com as regiões que não reconheciam seu governo central: bens, serviços básicos e insumos pararam de ser disponibilizados.

Faz-se claro, então, que as áreas separatistas do leste da Ucrânia tornaram-se dia após dia mais separadas da realidade ucraniana, tanto economicamente quanto ideologicamente, politicamente e socialmente. A invasão russa ao território ucraniano – já que o governo de Volodymyr Zelensky tentou retomar o controle da região – era uma questão de (pouco) tempo. É, inegavelmente, um conflito que repousa, também, na perspectiva Ocidente versus Rússia.

Ainda que todo o exposto já fosse o suficiente para explicar que a guerra segue em seu “primeiro mês”, embora já aconteça indiretamente há oito anos, há mais complexidade na questão. Desde 2004, quando as ex-repúblicas soviéticas da Estônia, Letônia e Lituânia aderiram à Otan e à União Europeia, o governo russo deixou bem claro que iria se opor a qualquer esforço de um outro Estado pós-soviético – e aí entra a Ucrânia – que porventura viesse a concentrar esforços na entrada em ambas as organizações.

Neste diapasão, a Ucrânia pretendia estabelecer laços mais fortes com o Ocidente e deixou transparente a sua intenção de ingresso tanto na Otan quanto na União Europeia, o que foi visto como uma ameaça à segurança russa. Com um exército fraco e sem aliados militares até então, a Ucrânia se viu vulnerável a uma invasão russa. E, de fato, foi o que aconteceu no fim de fevereiro de 2022.

Ainda que exista toda uma conjuntura política, todo um ensejo histórico, étnico, toda uma realidade geopolítica e econômica ensejando a presente guerra – brevemente exposta aqui –, a repercussão do ataque russo e das respostas do governo de Kiev acabam por afetar não diretamente as altas cabeças do front inimigo, mas sim a população civil como um todo; neste cenário, a coalizão internacional não pode ser silente e nem se valer apenas da retórica.

Para se ter uma ideia, até o 15.º dia do conflito, mais de 2 milhões de pessoas já deixaram a Ucrânia. Agora já são mais de 10 milhões, segundo dados do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur) – sendo estimado, ainda, que mais de 2 mil civis já tenham morrido no conflito. Não obstante, os russos que se opõem à guerra – ainda que estejam sofrendo perseguições e duras repressões do Kremlin – não encontram a mesma receptividade no cenário internacional: além de não vislumbrar qualquer normativa apta a lhes receberem, cresce cotidianamente um movimento de russofobia em todo o Ocidente.

É inevitável que pensemos que, num conflito, os civis, independentemente do front em que se encontram, estão igualmente fragilizados e com sua dignidade ameaçada. Assim, ainda que louvável a posição do Ocidente em relação aos migrantes ucranianos, o mesmo não pode ser dito em relação àqueles russos que, ideologicamente, estão próximos aos ucranianos, mas sem a mesma proteção. Estamos, de fato, protegendo os migrantes ou criando castas migratórias?

Priscila Caneparo é doutora em Direito Internacional, coordenadora da Clínica de Direito Internacional do UniCuritiba, professora dos cursos de Direito e Relações Internacionais do UniCuritiba e membro da Academia Brasileira de Direito Internacional.

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