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“É incompreensível que as emissoras façam ‘contrapontos’ mandatórios do debate para agradar os supostos dois lados de uma verdade, a título de conservar o discurso falso de que até ao mal ela dá a oportunidade de se apresentar como uma possível versão do bem”
“É incompreensível que as emissoras façam ‘contrapontos’ mandatórios do debate para agradar os supostos dois lados de uma verdade, a título de conservar o discurso falso de que até ao mal ela dá a oportunidade de se apresentar como uma possível versão do bem”| Foto: Zach Vessels/Reprodução/Unsplash

Houve um tempo, incomparável com os dias atuais, em que era unânime o reconhecimento do famoso “padrão Globo de qualidade”, inclusive no jornalismo opinativo. Quanto a momentos ou fatos pontuais que possam ter alterado a história, é outra questão. A menção aqui é sobre o padrão de qualidade do jornalismo de uma época, publicamente confirmado por um dos maiores de todos os tempos, o jornalista Alexandre Garcia, que lá trabalhou por décadas.

É que para o jornalismo informar ou opinar, por exemplo, sobre os horrores das ditaduras comunista e nazista do século passado, não é necessário ouvir a versão de algum excêntrico simpatizante daqueles regimes, o “contraponto” que vai defender alguma qualidade naquilo. Pois, ao dar lugar a esta figura numa matéria com este conteúdo apenas para sinalizar virtude, o veículo de comunicação paga o alto preço de, ao mesmo tempo, insultar a audiência.

A estética da equivalência entre os “dois lados” num caso assim transige com a insanidade do politicamente correto e abre mão de um padrão mínimo de qualidade jornalística. Qualidade que respeita fatos, verdades e realidades. Coisa muito diferente é a explicação histórica honesta de como as coisas aconteceram e como pensavam as pessoas naqueles tempos de tirania.

Contraponto no jornalismo opinativo não é procurar duas pessoas para opinar sobre a pedofilia com a condição de que uma discorra sobre a sua natureza insana e criminosa e outra defenda sua normalidade e descriminalização. Os debates políticos diários entre jornalistas na televisão e no rádio atualmente têm chegado a este nível do insulto à audiência quando alguns, a título de desempenhar o tal papel do “contraponto” à informação ou à verdade de um fato, cumprem a tarefa cabotina de mercadejar distorções, subversões e mentiras – frequentemente com a argúcia da serpente que cobre o ladrão com os ramos da árvore do conhecimento do bem e do mal; frequentemente com a habilidade do manipulador das palavras, aquele que absolve estuprador ou terrorista confesso.

Dentre eles há uma jornalista que casou com a profissão, mas não abandonou o amante Hegel e sua dialética, com quem trai publicamente em perfeito despudor, ainda sem abrir mão do seu precioso proselitismo de cabeceira; há outro, um jornalista esportivo, que igualmente casou com o padrão do descompromissado bate-boca futebolístico, tosco no seu caso, e segue amante da sua militância ideológica confessada. E ambos levam esta poligamia para o jornalismo do debate político que se pretende sério, onde se deleitam fazendo jogos de palavras num equilibrismo entre mimetizar o dissimulado jogador de pôquer e o calculista enxadrista, simultaneamente e sem compromisso com as regras dos jogos, sem escrúpulos ou pudor, passando ainda por bilhete de entrada falso e xingamento do árbitro – tudo sem mexer ou ruborizar um músculo facial, porque deles são naturalmente desprovidos, graças à harmonia lombrosiana dos propósitos.

Quando o assunto é a história do próprio país, vivida ao vivo, a política e seus atores não podem ser tratados com tamanha falta de compromisso com a verdade e com o fato, com esta desfaçatez que vemos nestes profissionais que se propõem a dar opinião política pública. Eles são tão partidários, ou mais, quanto naturalmente são os próprios políticos. O jornalismo opinativo não tem o direito de manipular a opinião pública invertendo sub-repticiamente características notórias dos políticos, algumas para além de “transitadas em julgado” de fato, e subverter tudo, seja por dinheiro ou ideologia, vaidade ou por oportunismo patológico injustificável.

Escolher alguém para o papel de “contraponto” do debate político a partir do critério de que ele ou ela deve odiar um determinado político, a ponto de não se indignar que um colega jornalista deseje sua morte, não se trata apenas de falta de qualidade profissional e valores pessoais, mas é também oportunismo barato do próprio jornalismo ali praticado.

A jovem professora de Filosofia, uma inteligente e equilibrada comentarista política que ponderou no debate alguns fatos históricos e pontos de vista filosóficos, é grosseiramente interrompida pelo “colega contraponto” aos berros típicos de um baixo Aziz atacando a doutora Nise, para chamá-la de “mais uma viúva da ditadura!”, como se dissesse “vai Curíntia!” ao palmeirense. Qual o padrão de qualidade de uma coisa grotesca dessas, deste desrespeito à professora, ao veículo de comunicação e à própria insultada audiência?

É incompreensível que as emissoras condicionem seus programas a “contrapontos” mandatórios do debate só para agradar os supostos dois lados de uma verdade, a título de conservar o discurso falso de que até ao mal se dá a oportunidade de se apresentar como uma possível versão do bem. Claro que há pontos de vista diferentes sobre ideias e até versões de histórias políticas. Porém, relativizar fatos políticos incontroversos, juridicamente provados, é desonestidade. Relativizar o fato de que os juízes do STF estão passando de todos os limites constitucionais é desonestidade jornalística. Eles fazem isso, e isso não é jornalismo.

Escolher alguém para o papel de “contraponto” do debate político a partir do critério de que ela ou ele deve odiar determinado político – a ponto de não se indignar quando outro colega jornalista deseja a morte daquele mesmo político – não é apenas falta de qualidade profissional e valores pessoais, mas é também oportunismo barato do próprio jornalismo da casa.

Escolher alguém para este papel por ser militante de uma causa sectária que, dentre outras agressões à liberdade e à democracia, declara que o objetivo é tomar o poder (e não ganhar eleições), ou que a Nicarágua e a Venezuela são democracias, é uma falsidade pusilânime do jornalista e do próprio veículo junto à audiência. Estes não têm uma opinião sobre um fato, mas apenas executam o papel de torcer e distorcer para que um determinado lado político tenha a aparência de ser o próprio mal, por meio das manobras levianas que atrelam a uma verdade, seja qual for. E que o outro lado, por mais desonesto ou ilegal que comprovadamente seja, tenha a aparência de ser bom e limpo.

Não há inteligência racional nem honestidade intelectual nestes debatedores do “contraponto” enviesado contra fatos. Eles não acrescentam nada para elevar o fato e a verdade, e por isso são deletérios ao jornalismo, ao programa em que são escalados e ao veículo em que trabalham. Contribuem apenas com o sectarismo cego espalhado dolosamente pelos interessados nisso.

Os protocolos de governança de um veículo de comunicação não podem conceber um formato de jornalismo que dá a possibilidade de voz de “opinião” diária a alguém que mente, distorce, relativiza verdades, ignora fatos e até justifica político ladrão, admitindo-o como um estadista pronto para um novo mandato. São cherry-pickers profissionais (escolhem pontos específicos e os fazem maiores que o quadro todo), formados na escola da programação “neurossinistra”, especializados em relativizar a verdade e a mentira, trazendo-as para o campo de neologismos pernósticos, como o das “narrativas” – o nome que torna qualquer teoria possível.

“Pós-verdade” é um neologismo para entender os desejos pueris destes Peter Pans e Sininhos velhos, concebidos em utopias teratológicas de seus recônditos emocionais, ou até químicos. E nada é excessivamente caro para os revoltados. Cada corte do seu discurso maltrata a verdade e enfeita a mentira.

Psicopatas costumam agir assim em seu mundo de disfunção cognitiva e social; sua tagarelice é calculadamente meiga, sua aparência é inofensiva e até pode lhes garantir acidental sucesso profissional. Quando não, só lhes resta a opção extravagante dos cherry-pickers que escolhem pequenos pontos específicos e os fazem maiores que o quadro todo, encaixando sua necessidade de ostentação.

Se ainda há jornalismo vivo, ele não pode assistir a um ativismo judicial servindo como instrumento de fraude para beneficiar político ladrão ou traficante de drogas e, embora divulgue e condene o fato, ofereça ao público também a versão do “contraponto”, que assume aquele idioma igualmente prosélito e frequentemente incompreensível dos juízes, justifica tudo como se normal fosse e ainda defrauda o tempo concedido para desviar do assunto e acusar o adversário do ladrão por falar palavrões e não ter compostura. E tudo fica nivelado e equivalente porque tudo deve ser tido como “narrativas”.

Qualificar um código de ética, os protocolos morais, construir uma cultura de governança e compliance com filtros mínimos de honestidade intelectual é a missão para auferir um padrão de qualidade editorial comprometido com valores de uma sociedade livre, à frente o fato, a verdade, a mentira ou dúvida claramente expostas.

Para confirmar que este texto contém apenas constatações, mas sobretudo contém a esperança de que o jornalismo não morreu, é imperativo reconhecer que os altos padrões de qualidade, portanto de honestidade e de fidelidade aos fatos e à verdade, sobrevivem em sucessos da imprensa contemporânea como a Gazeta do Povo e o programa Os Pingos nos Is, da Jovem Pan.

Juarez Dietrich é advogado, Master of Laws (LL.M), pós-graduado em Processo Civil, ex-membro do banco de conselheiros do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa e do European Corporate Governance Institute, ex-diretor financeiro da OAB Paraná e especialista do Instituto Millenium.

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