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Nos últimos dias, o Brasil se deparou com uma denúncia estarrecedora: mais de R$ 90 bilhões podem ter sido desviados do INSS por meio de descontos irregulares sobre aposentadorias e pensões. Segundo investigação da Polícia Federal, em parceria com a Controladoria-Geral da União (CGU), convênios firmados com entidades de representação permitiram a cobrança de valores diretamente dos benefícios, muitas vezes sem autorização clara ou com formulários ambíguos.
Não houve arrombamento, nem espetáculo policial. O que houve foi um sistema funcionando exatamente como desenhado: com convênios burocráticos, folha de pagamento automatizada, silêncio institucional e milhões de vítimas – em sua maioria, pessoas idosas, vulneráveis, com baixa escolaridade e sem acesso pleno à informação.
O problema de fundo de escândalos como o do INSS – o uso reiterado da lei para ferir os princípios que deveria proteger – raramente é discutido com a seriedade necessária. Chamar isso de corrupção é correto, mas talvez insuficiente
Esse é o tipo de perversão que Frédéric Bastiat denunciou com clareza em sua obra A Lei. Para o economista francês, a norma deixa de cumprir seu papel civilizatório quando é capturada para servir como instrumento de pilhagem – legitimando, com carimbo oficial, o que em qualquer outro contexto seria considerado roubo.
No Brasil, essa lógica se repete com inquietante naturalidade. Entidades sindicais e associações de classe assinaram convênios com o INSS para permitir descontos diretos em contracheques. Em tese, o beneficiário deveria consentir livremente. Na prática, os casos mostram autorizações frágeis, renovadas automaticamente, muitas vezes sem ciência clara do titular.
O ponto mais grave ocorreu em 2022, quando o Congresso Nacional rejeitou uma medida provisória que exigiria a renovação anual dessas autorizações das entidades junto ao INSS. A justificativa pública era o risco de dificultar o acesso dos sindicatos às suas bases. O efeito prático foi a manutenção de um sistema opaco, com baixa accountability e alto potencial de abuso.
Esse escândalo não é um ponto fora da curva. Ele se insere num padrão recorrente: o uso da legalidade como escudo para práticas que, no fundo, configuram espoliação. A captura do Estado por interesses organizados se dá não com rupturas visíveis, mas por dentro do sistema – por meio de normas técnicas, brechas legislativas, relatórios negligenciados e conveniências políticas.
Bastiat dizia que o Estado é "a grande ficção pela qual todos tentam viver às custas uns dos outros". No Brasil, essa ficção tem CNPJ, cargo comissionado, convênio com a Dataprev e, muitas vezes, blindagem judicial. Não se trata apenas de falhas administrativas. Trata-se de uma engrenagem pensada para favorecer quem tem acesso privilegiado à máquina pública – em detrimento de quem não tem voz.
A cada novo escândalo, como o do INSS, a reação institucional tende a seguir o roteiro conhecido: exonerações pontuais, notas oficiais e, em alguns casos, CPIs que acabam em relatórios inconclusivos. O problema de fundo de escândalos como o do INSS – o uso reiterado da lei para ferir os princípios que deveria proteger – raramente é discutido com a seriedade necessária. Chamar isso de corrupção é correto, mas talvez insuficiente. Bastiat propôs um nome mais preciso: espoliação legal – a transformação da norma em ferramenta de dominação.
Indignar-se é necessário, mas insuficiente. É preciso revisar leis, sim – mas também o pacto moral que sustenta a conivência silenciosa de tantas instituições. Enquanto a legalidade continuar disponível para interesses privados travestidos de representação coletiva, novos escândalos continuarão a surgir. E o custo será sempre o mesmo: pago por quem deveria estar protegido. Bastiat estava certo. E a vergonha, mais uma vez, é nossa.
Felipe Ribeiro é médico formado pela Universidade Federal de São Paulo, com observership em Harvard. Atua com inovação digital, como fundador da Eles, plataforma de saúde com cuidado recorrente.