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Lamentação, por Giotto.
Lamentação, por Giotto.| Foto: Reprodução/Wikimedia Commons

Há ao menos um sentido – claro – em que se poderia dizer que nosso tempo encontra-se embebido em cultura: nos usos mesmos do termo, que se entrelaçam, que evocam outros conceitos e o absorvem, que o fazem transbordar para outras esferas e dimensões da atuação humana.

Consideremos: pode-se falar de cultura como essa construção coletiva, quase documental, que os homens buscam tanto relativizar quanto absolutizar, rebaixar a modelos de degradação humana ou elevar como realização exemplar da civilização. Se o fazem, é porque lidam com valores, com o engenho de homens e mulheres, com transmissão de feitos – e assim ganham corpo expressões como “cultura europeia”, “cultura africana”, “cultura cristã”, “cultura medieval”, “cultura grega”, “cultura asiática”, num rol praticamente sem fim de recortes.

Mas a cultura vive: fala-se da cultura de nossos tempos e constroem-se “guerras culturais”, numa manifesta traição da cultura. A dinâmica dos valores, dos costumes, da moral, a relação da arte com esses mesmos valores, costumes e moral – para alguns, é tudo o que importa quando se trata da manifestação cultural e artística, que se faz então apêndice de projetos políticos, que torna-se arma em punho de ideologias.

Em alguma medida, porém, em algum momento, olhamos para nós mesmos. Dizemos que queremos ser homens e mulheres de cultura, que há uma “alta cultura” a ser adquirida, que nossos filhos fariam bem em ser gente que busca “cultura”, que as escolas devem apresentar “cultura” a seus alunos. Há nesta cultura uma dimensão individual – a dimensão de uma “colheita” a ser feita por cada um, em ritmo próprio – que parece diferenciá-la do âmbito coletivo dos dois primeiros empregos. Esta nos é próxima, depende, em grandíssimo grau, de nós mesmos e só. Sobre ela temos relativo controle, a respeito dela podemos fazer planos, podemos tecer objetivos, escolher veredas.

Mas, sim: parece haver enorme abismo entre as duas; um abismo tão grande quanto o que há entre as limitações do indivíduo e a construção coletiva dos valores culturais, a qual exige tempo e jaz distante, assaz distante, da intervenção imediata do arbítrio de cada homem. Podemos formar-nos, mas não formar a cultura com uma ação direta, pensada; podemos ingressar na “grande conversação” com as grandes figuras do passado, mas não levar a comunidade, qual um coro, para o seio desta interlocução.

Que relação, pois, pode haver entre esse engrandecimento pessoal e as relações humanas – as familiares, as fraternas, as profissionais? De que modo a aquisição de cultura transborda, caso o faça, para que toque e afete a vida de outros? Poderá transpor o que vemos como tão grande abismo entre o indivíduo e a coletividade?

É preciso ser objetivo neste ponto, ir diretamente àquilo para o qual olhamos quando desejamos pôr em prática o projeto pessoal de aquisição de cultura – às obras mesmas, enfim, aos instrumentos que ofertam isto que se almeja. E estes instrumentos, sob o risco de sermos acusados de elitismo, são as manifestações artísticas carregadas de sentido. Intuímo-lo em maior ou menor grau. No entanto, a intuição é difusa, e deve-se perguntar: o que nos dão Beethoven e Mozart, para o quê contribuem Giotto e Rembrandt, por que o trabalho de abrir um volume de Mann, de Borges, de Goethe?

Eles nos dirão. Ou melhor: diremos nós quando diante deles, à escuta, atentando para o que fazemos neste momento de intimidade em que os temos a sós conosco. Notamos primeiro que nos dizem algo, que há algo objetivo a ser dito, e que esse algo precisa ser... humano, universal, para que conserve a posição dessas obras como desejáveis, como fonte da tal “cultura” capaz de ampliar-nos o horizonte pessoal. Vamos a elas porque disseram algo a outros, de geração em geração, e, portanto, hão de dizer algo também a nós.

Dizem, portanto; falam de algo. E esse algo estará entre as primeiras coisas que o leitor, o espectador, o ouvinte irá assimilar. Se lograram a condição de alta classe, poderão falar de qualquer coisa circunstancial, de algo restrito a certo tempo ou espaço, e não obstante se conservarão permeadas de tanta humanidade que serão patrimônio do espírito do homem – e por isso chegarão a nós. O Quixote pode ter, como pano de fundo, a transformação do espírito de cavalaria medieval; Camões pode voltar-se para o desconcerto do mundo e para um conceito de amor com nuances próprias. No entanto, tocam-no porque vão além daquele momento e nos ensinam não-sei-quê sobre o espírito do homem, sobre como nos sentimos e pensamos de fato, sobre o que podemos sentir ou pensar, sobre o quão grandes e o quão pequenos podem ser o coração e a vontade humanas. As fantasias de madame Bovary são também as nossas; a angústia do coro inicial da Paixão Segundo São Mateus de Bach é a nossa angústia. Os tantos corações partidos, as tantas invejas, os tantos ciúmes, os tantos sentimentos de posse, as tantas fraquezas, mas também os grandes ideais e as grandes fortalezas, as grandes superações – todo o horizonte da experiência humana, enfim –, tudo é nosso ou pode sê-lo.

Caso isso soe abstrato, não o soará quando o trouxermos à nossa experiência concreta – à experiência de seres relacionais, de pais e mães, esposos e esposas, amigos e filhos. Se está hoje em voga falar em “empatia”, é porque conhecemos, no cotidiano, a incapacidade que têm alguns de perceber as fraquezas, vulnerabilidades e defeitos alheios. E também sabemos, sobretudo por meio daqueles cuja humanidade, cuja sensibilidade e cuja compaixão chegaram aos mais altos níveis, que só quem reconhece a própria miséria, a própria grandeza, as próprias fraquezas – só esse alguém é capaz de compreender e suportar e buscar sanar as misérias e fraquezas de outro. Porque a experiência da humanidade lhe será natural, saberá compreender a humanidade de quem lhe é próximo – terá ao menos a consciência de que conviria retirar a trave do próprio olho antes de tratar da palha no olho daqueles com quem convive.

Aos que lidam com os estudos artísticos, literários e culturais, um incômodo se fará sentir aqui de imediato. Há, se não uma objeção a isso, ao menos uma inquietação. Por meio do que representam, as principais manifestações culturais, as principais manifestações artísticas, expressam toda essa gama de humanidade, mas não seriam imprescindíveis para isso. Uma manifestação prosaica, simples, direta, não expressaria, não descreveria, o olhar de cansaço do Voltando da cidade de Korzukhin, bem como tudo o que ele significa? A grandeza de Walter Raleigh pintado por Millais? As solenidades, com suas sombras e seus pontos de luz, de um barroco?

Descreveriam, de fato. Mas teriam o mesmo efeito? Não, em definitivo, e sabemos o porquê: porque estas peças que são o estado da arte da cultura não são o que dizem, mas essa mistura indissociável do que dizem e de como o fazem, destas imagens e palavras, de cores, de sons, silêncios. Não custará repetir que o modo de expressão, nesse tipo de objeto artístico, conta tanto quanto o conteúdo expresso; ou, antes, que ambos se unem de tal modo que sequer falar em separação já soa como violação do engenho artístico. Sabemos isso desde tempos imemoriais. Reconheço o constrangimento de ter de dizê-lo.

Estamos, de todo modo, falando de um trabalho formal que amplia o impacto da comunicação. Se quisermos ser utilitaristas, pragmáticos, recordaremos que expressar-se bem é conhecer-se bem; que as nuances de nossos sentimentos, os matizes das paixões, os cinzas das lutas interiores, só são captados com certa linguagem refinada, sensível aos detalhes. Conhecemos a situação da criança que está com fome, com sono, e chora: não sabe expressar o que sente, e por isso não é precisa na expressão. Ora, maior é nossa plasticidade linguística, maior é nossa sensibilidade e nossa percepção à vida interior, mais humanos somos, menos “animalizados” nos fazemos. Conhecemos sempre homens e mulheres de expressividade tão baixa que, não fossem certo espírito caritativo cristão, acabaríamos por compará-los a bichos.

Pensem em como isso afeta nossa comunicação com os outros. Em como maridos e mulheres não conseguem se comunicar porque ela acredita que o esposo habita em sua cabeça, que tem ciência de suas expectativas; em como ele se expressa sucintamente e, ainda assim, julga-se em posição de saber com rigor tudo o que se passa em sua cabeça e seu coração. Na relação entre noras e sogras: quantas expectativas se frustram, e os ressentimentos – uma se sentirá preterida, outra crê não participar o suficiente... E mesmo nós: tantas são as vezes em que nos irritamos ou aborrecemos – conosco, com os outros –, mas sem vislumbrar as razões... Vivemos apenas na superfície da sensação. Talvez a sensibilidade, a densidade, a precisão com que as artes expressam nossos movimentos interiores possam lançar luz sobre o que há de fato por trás do que cada qual sente. E o impacto dessa precisão, naturalmente, há de evitar as entrelinhas involuntárias, as queixas que se dirigem a alvos errados na relação entre homem e mulher, entre funcionários e superiores – entre dois indivíduos, enfim.

Temos, pois, maior atenção ao nosso mundo interior, maior sensibilidade e compaixão ante o mundo interior dos outros; e, paralelamente, maior capacidade de expressão. Isso já bastaria, é claro, para deixar provado que a aquisição da dita “alta cultura” é proveitosa para as relações humanas embora não seja esse seu principal objetivo, embora tenha ela regras próprias, embora responda somente às exigências de sua arte. Estes nossos tempos, contudo, fazem com que contribuam com algo mais.

Pude falar na aquisição da expressividade e da sensibilidade. Ocorre que o próprio desafio que a aquisição de ambas impõe revela algo que nos falta com maior frequência. Serei claro: o exercício da cultura é o exercício da atenção. Ora, para a velocidade de notícias que correm o mundo, para a velocidade com que mensagens circulam, a atenção é um obstáculo; para a contemplação artística, porém, é condição indispensável. Ela sofre, hoje, tanto quanto sofrem as famílias: ressentem-se ambas de que as telas venham antes, em prioridade, do que a atenção. As grandes obras nascem da contemplação – da mais breve à mais demorada – e precisam ser assimiladas assim. Eis por que permanecem, por que se imprimem. As notícias, as mensagens, o furor das novidades – nada disso o faz: destroem, antes, a atenção ao outro, seja este outro o engenho humano das artes, seja a vida que compartilha conosco da rotina, das dores, das alegrias.

Com ela, de mãos dadas, vem a paciência, irmã tão próxima. Porque há de ser longo, o exercício da formação própria é o exercício da constância, da espera. Falamos da paciência para cada contemplação individual, mas também para a formação como um todo. Num paralelismo que talvez há de soar forçado, trata-se de paciência semelhante à que se deve nutrir pelos próximos – para que se aprimorem, para que se levantem das quedas, para que se apercebam das próprias mazelas. Eis uma mesma aula para duas situações distintas, mas que se unem na grandeza do espírito do homem, na magnanimidade de que não devemos nos esquecer jamais – jamais, jamais. Criados fomos para a humilde grandeza das relações humanas, das relações do espírito com o que há de mais excelso.

Hugo Langone é poeta, autor de “Do nascer ao pôr do sol, um sacrifício perfeito”, “A descida do monte Tabor” e “Chorar por Dido é inútil: Santo Agostinho, Confissões e o manejo da literatura pagã”. O texto deste artigo foi proferido como palestra em 30 de julho de 2021.

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