• Carregando...

No fim do ano passado, retornou ao debate a proposta de recriar a empresa estatal Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S.A.). O tema comporta uma pergunta: qual deve ser o papel do governo em relação à cultura? Há três respostas possíveis: a) não se envolver; b) controlar e dominar; ou c) apoiar e incentivar. A compreensão da questão exige compartimentá-la, para saber em quantos segmentos se divide a cultura e, então, decidir sobre a política oficial para cada segmento.

De saída, a alternativa "b" (controlar e dominar) deve ser descartada, pois ela só é cabível em regimes ditatoriais. Nesses regimes, filmes, produção de vídeo e de áudio, programas de televisão, peças teatrais, música, livros, revistas, jornais, críticas literárias e outras formas de expressão e opinião são controladas e censuradas pelo governo, e nada se faz sem a concordância dos governantes. É assim na China, na Coreia do Norte, em Cuba, no Zimbábue, como também o foi em todas as ditaduras de direita ou de esquerda. Em sociedades livres, essa alternativa é inaceitável e incabível, portanto deve ser abandonada in limine.

A alternativa "a" (não se envolver) significa deixar todas as formas de cultura a cargo do "mercado", isto é, a cargo das pessoas, das empresas, das organizações não-governamentais e das comunidades. Significa deixar a cultura livre e em paz. Porém, ainda que a cultura tenha de ser livre e deixada em paz, a postura niilista total do Estado (nada fazer) não é boa. A razão é que não se podem confundir coisas diferentes. Um museu que protege objetos históricos não é a mesma coisa que um show de rock ou um filme comercial. Embora ambos sejam "eventos" culturais, a essência deles é completamente diferente.

Lembro o episódio do saqueamento e destruição do Museu de Bagdá, em 2003, quando mais de 170 mil peças foram destruídas ou roubadas nos dias que se seguiram ao colapso do regime de Saddam Hussein. Esse museu guardava peças importantíssimas da antiga Mesopotâmia, região considerada o berço da civilização, onde surgiram as primeiras cidades, o primeiro alfabeto e o primeiro código jurídico. Esse é um exemplo de "espaço cultural" que exige a intervenção do governo para guardar, manter, conservar e garantir as peças contra deterioração, roubo ou destruição, pois não se trata de um assunto comercial, mas sim da preservação da memória e da história da humanidade.

Não é preciso muita reflexão para concluir-se que certas atividades culturais exigem a atuação do Estado, devendo ser descartada, portanto, a alternativa "a" (nenhum envolvimento do governo). Em uma sociedade livre e democrática, a opção correta é a "c" (apoiar e incentivar). O drama é que aí entra em cena um gigantesco problema: como o Estado pode apoiar e incentivar sem controlar e dominar? Na velha Embrafilme, ao selecionar os filmes e projetos para executar ou incentivar, os burocratas exerciam o controle e a censura, sempre de acordo com o padrão ideológico do governo a que pertenciam. Nada autoriza a pensar que, se a Embrafilme for recriada, a prática será diferente.

Ademais, não é lógico recriar a Embrafilme se o Brasil já tem a Agência Nacional do Cinema (Ancine), que é o órgão oficial de fomento, regulação e fiscalização das indústrias cinematográfica e videofonográfica. Os defensores da ideia querem algo mais do que um órgão de apoio, como a Ancine, e desejam uma empresa estatal de produção, como a Embrafilme, que daria fartos empregos no governo e poder de controle sobre a cinematografia comercial. Cinema é cultura comercial, como é um show de rock. Se houver público, será produzido e será rentável; se não houver público... paciência! Existem filmes históricos, documentários ou educativos, sem fins comerciais e destinados à educação ou arquivos de memórias, que devem ser apoiados pelo governo. O que não faz sentido é o Estado financiar, por exemplo, um filme policial ou de mero entretenimento, sem mérito cultural algum.

Por fim, o Brasil tem enorme carência de bibliotecas públicas, de museus históricos e obras de memória, o que só faz tornar ainda mais sem sentido a recriação de uma empresa estatal para produzir e distribuir filmes comerciais. Em grande medida, a cultura tem de ser deixada em paz sim e, mesmo onde o governo deva incentivar e apoiar, o controle e a censura devem ser impedidos por lei. Afinal, a Constituição diz que vivemos sob a liberdade de comunicação, de opinião e de expressão.

José Pio Martins, economista, é vice-reitor da Universidade Positivo.

0 COMENTÁRIO(S)
Deixe sua opinião
Use este espaço apenas para a comunicação de erros

Máximo de 700 caracteres [0]