“É uma experiência eterna que qualquer homem que detém poder tende a abusar dele: vai até onde encontrar limites.” (Barão de Montesquieu)
O Brasil passou, depois de meados dos anos 80 e, particularmente, após a promulgação da Constituição, por um lento processo de reconstrução das instituições democráticas. Embora o país tenha experimentado vicissitudes que colocaram à prova a robustez da nossa democracia, caso do impeachment do presidente Collor, por exemplo, o percurso foi relativamente exitoso. Os movimentos de junho de 2013, as eleições presidenciais de 2014, a Lava Jato, oimpeachment da presidente Dilma, a polarização política e o jogo partidário duro, implacável, operaram a divisão radical da sociedade, esgarçando a confiança na capacidade de o país erigir um arranjo institucional adequado e duradouro.
Isso ficou mais evidente com o presidente Bolsonaro, eleito manobrando um discurso populista de extrema-direita supostamente regenerador. Hoje a normativa constitucional, os direitos fundamentais, a imprensa, o Congresso e o Supremo Tribunal Federal sofrem ataques periódicos, sendo testados quanto às respectivas capacidades de resiliência. Além da corrosão continuada dos alicerces democráticos do país, por duas vezes, pelo menos, o presidente namorou com a possibilidade de golpe no sentido clássico, tristemente conhecido pela nossa história. É nesse contexto que emerge a preocupação com o legalismo autoritário, com a defesa das instituições por meio da assim chamada democracia militante e com o combate às práticas iliberais ou ao constitucionalismo abusivo.
O uso das redes sociais para a disseminação de fake news, as práticas digitais neofascistas, as ameaças aos grupos discordantes, à oposição, aos advogados e jornalistas não têm, entretanto, sido suficientes. Cuida-se, também, além da captura das agências de controle horizontal, da cooptação de dirigentes de órgãos constitucionais ou do desmonte de políticas públicas concretizadoras de direitos fundamentais, da utilização dos instrumentos legais, particularmente daquele entulho autoritário que sobreviveu ao processo de redemocratização, para atacar, punir ou intimidar quem ousa manifestar crítica contra o presidente ou seu governo.
A estratégia é bem conhecida. Trata-se de esfriar e comprimir a livre circulação de ideias, de intimidar determinados nomes como medida exemplar para desestimular o avanço da crítica, erodindo, assim, não apenas as virtudes cívicas e a vitalidade do mercado de ideias, mas um dos pilares da República consistente no princípio de que nenhum ocupante de cargo público deve ficar imune ao escrutínio, ainda que duro e injusto, dos cidadãos ocupando o espaço público.
A Lei de Segurança Nacional (Lei 7.170/83) tem sido manejada como arma poderosa para a finalidade aludida. Promulgada em 1983, durante o governo Figueiredo, já no contexto da “abertura lenta, gradual e segura”, menos dura, portanto, do que as pretéritas e análogas normativas editadas durante o regime militar, ainda assim ostenta uma filosofia violadora das diretrizes democráticas e pluralistas introduzidas pela Constituição de 1988. A frequência com a qual tem sido utilizada, ultimamente, é preocupante. São dezenas os inquéritos instaurados, a maioria por iniciativa do ministro da Justiça; os primeiros casos com Sergio Moro e dezenas de outros com André Mendonça, pondo em risco direitos caros e, em especial, a livre expressão do pensamento, essenciais numa democracia constitucional robusta.
Bem por isso, há vários projetos de lei tramitando no Congresso Nacional com o propósito de substituir a Lei de Segurança Nacional, muito focada na defesa do Estado compreendido a partir da velha ótica do regime militar, por um instrumento normativo de defesa das instituições democráticas da sociedade pluralista e inclusiva que a Lei Fundamental pretendeu instituir. Uma frente de trabalho valiosa, portanto, para aqueles comprometidos com a democracia, é a luta pela aprovação de nova lei compatível com a Constituição. Isto, entretanto, não é demais reconhecer, pode levar algum tempo.
Esta é a razão pela qual vários partidos políticos (PTB, PSB, PSDB e PT, PSol e PCdoB) aforaram quatro Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs), mecanismo de controle concentrado da constitucionalidade, perante a suprema corte, para atacar a lei em questão e denunciar o seu indisputável contraste com a ordem constitucional. Há ADPFs que postulam, tal como ocorreu com a Lei de Imprensa, também obra da ditadura militar, a declaração de sua incompatibilidade integral (hipótese de revogação), caso da apresentada pelo PSDB; outra, manejada pelo PSB, impugna os dispositivos mais graves e pede a interpretação conforme de outros, mantendo, enquanto nova lei não for introduzida pelo Legislativo, os artigos compatíveis com a Lei Fundamental, filtrados e relidos à luz desta, em particular para evitar a possibilidade de vácuo legislativo e permitir às instituições da República, como tem ocorrido com o Supremo Tribunal Federal, o combate às ações antidemocráticas e conspiratórias dos grupos tomados pelo sectarismo e pela visão autoritária do mundo da vida. Isso já seria suficiente, neste momento grave pelo qual passa a nação, para, prevenindo o uso arbitrário, contínuo e intimidatório da lei pelos órgãos de repressão, reforçar a efetividade dos direitos e garantias, notadamente das liberdades de crítica e de oposição, gravemente feridos nos dias que correm.
O Congresso deve cumprir o seu papel. Uma nova lei é necessária para defender a democracia contra aqueles que usam as franquias da democracia com o propósito de erodir as suas virtudes, aniquilar os seus preceitos e desacreditar as instituições. Falo, aqui, do paradoxo da democracia nos termos da doutrina de Popper. A superação da ingenuidade é reclamada para a sobrevivência da civilização e da Constituição democrática. Mas, enquanto o Congresso mantém-se inerte, importa esperar que a suprema corte reconheça a discrepância dos dispositivos violadores da Lei Fundamental, opere a releitura dos que, com algum esforço hermenêutico, podem ser salvos e, prevenindo o vácuo normativo, resguarde, com a incidência de nova luz, os artigos indispensáveis para o resguardo das instituições. A simples e imediata decretação da integral incompatibilidade da Lei de Segurança Nacional com a normativa constitucional não parece constituir a solução mais adequada no momento que estamos a experimentar. Figurando como relator dos feitos apontados o experimentado ministro Gilmar Mendes, cumpre esperar que o Supremo Tribunal Federal decida corretamente e com os olhos voltados para o melhor caminho. De uma forma ou de outra, porém, felizmente, o fim da Lei de Segurança Nacional e, portanto, do seu uso abusivo, já se encontra bem visível no horizonte.
Clèmerson Merlin Clève é professor titular das faculdades de Direito da UFPR e UniBrasil.
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