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Não nos resta outra alternativa senão a de encarar, proclamar e empreender uma imperiosa e inadiável marcha rumo ao Estado laico. Essa é questão que de­­veria ser levada aos candidatos e discutida abertamente por eles.

Esse debate sobre o aborto é falso, dissimulado, hipócrita. Mascara uma questão de grande relevância e encobre um problema institucional que está no cerne da nossa fragilidade republicana. Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva manifestaram-se sobre a interrupção da gravidez de forma semelhante ao longo do primeiro turno e todos na esfera do "respeito à vida" que tanto agrada ao feixe de confissões religiosas cristãs.

O problema do aborto diz respeito à saúde pública, sobretudo em países dominados pela corrupção e pelo desapego às leis onde vale o "vale-tudo". Descriminalizado ou não, o aborto con­­tinua sendo praticado aberta e impunemente na vasta rede informal de atendimento médico.

O que deve sair imediatamente do debate eleitoral é essa fingida religiosidade que leva Deus aos palanques, macula as mais íntimas opções espirituais do eleitor e abala gravemente os fundamentos da nossa democracia – teoricamente isonômica, tolerante, aberta, inclusive aos agnósticos, descrentes e ateus.

O secularismo, intrinsecamente ligado ao ideal democrático e republicano, foi seriamente comprometido quando em 2009 o presidente Lula, acompanhado pela candidata in pectore, Dilma Rousseff, encontrou-se com o Papa Bento XVI na Santa Sé e assinou uma Concordata que tentou manter secreta, depois minimizou e, em seguida, foi obrigado formalizar. Esse foi o pecado original aceito pelas confissões da cepa luterana, certas de que teriam suas compensações. E tiveram: a enxurrada de concessões de emissoras de rádio e tevê que distorcem e comprometem o equilíbrio do sistema brasileiro de radiodifusão.

Não obstante, a sociedade brasileira novamente avança em direção ao espírito de Guerra Santa justo na véspera do feriado nacional de 12 de Outubro, data da padroeira do Brasil. Em outras ocasiões produziram-se confrontos que não honram nossa temperança e capacidade de convivência.

Diante do explosivo coquetel composto por altas doses de fanatismo político-eleitoral e igual quantidade de fervor religioso, não nos resta outra alternativa senão a de encarar, proclamar e empreender uma imperiosa e inadiável marcha rumo ao estado laico. Esta é questão que deveria ser levada aos candidatos e discutida abertamente por eles.

Religião é assunto de foro íntimo, tirá-la dessa condição superior para colocá-la no horário eleitoral é desrespeitá-la no que tem de mais elevado. Quando a crença converte-se em clericalismo, a etapa seguinte é a teocracia avassaladora, cega, tirânica. Não há outra opção, o mundo islâmico está aí para comprová-lo, apesar das exceções na Turquia e Líbano.

Israel vai na mesma direção, a despeito da ojeriza inicial da maioria dos religiosos judeus em aceitar um estado que não fosse criado por ação do Messias. Cercado de inimigos, isolado pela intransigência em admitir a convivência com um estado palestino, Israel enfrenta neste momento uma grave crise doméstica produzida pela coalizão da direita com os religiosos que pretende obrigar os que desejam obter a cidadania israelense a jurar fidelidade a um "Estado judaico e democrático". Se judaísmo for definido como cultura ou civilização, tudo bem, mas no caso é religião e um estado religioso não pode ser democrático.

O "parceiro estratégico" do governo brasileiro, Nicolas Sarkozy, pretendendo ser fiel às tradições seculares do republicanismo francês, não vacilou e proibiu o uso pessoal de símbolos religiosos em locais públicos (burka islâmica, kipá judaica e crucifixos ostensivos).

Medida extrema, antipática, incontornável. Deus é grande demais para ser enfiado num míssil nuclear. Ou enlatado pelo marketing político .

Alberto Dines é jornalista.

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