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Gado em Planalto, BA, 2017. O solo raso e pedregoso não se tornaria fértil com irrigação.
Gado em Planalto, BA, 2017. O solo raso e pedregoso não se tornaria fértil com irrigação.| Foto: Diego Baravelli/Wikicommons

A questão a respeito de quem teria acertado ou errado no abordar a Transposição do São Francisco, se o ex e atual Presidente ou o que teve mandato entre 2019 e 2022, é uma questão absolutamente menor, que não deveria ocupar espaço na imprensa, nem na cabeça das pessoas. A questão que merece aprofundamento é: por que a transposição foi cogitada? Ela, em alguma medida, iria trazer prosperidade para o Semiárido? Essa nova questão nos remete a procurar entender o que é o Semiárido do Nordeste, que com sua delimitação aderente aos contornos do bioma caatinga, se constituiu em um espaço no qual se encontra o maior contingente de população rural do Brasil. Lá viviam em 2022 cerca de 28 milhões de pessoas, mais de 10% da população brasileira, dos quais próximos a 10,64 milhões habitavam o meio rural, correspondendo a 38% da população total do Semiárido, um percentual de mais do que dobro do verificado ao nível nacional, que é de apenas 15% da população brasileira, estimada como não urbanizada. Segundo o Ministério da Integração Nacional, é no Semiárido que se concentra mais da metade (58%) da população pobre do país e o UNICEF, por sua vez, aponta que 67,4% das crianças e adolescentes no Semiárido são afetados pela pobreza, quase nove milhões de crianças e adolescentes desprovidos dos direitos humanos e sociais mais básicos, e dos elementos indispensáveis ao seu desenvolvimento pleno como cidadãos.

O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no Semiárido é considerado baixo. Aproximadamente 82% dos municípios que integram o Semiárido não ultrapassam o IDH de 0,65. Estas marcas significam que 62% da população do Semiárido vivencia um déficit em relação aos indicadores de renda, educação e longevidade. Essa população rural do Semiárido é composta, essencialmente, de agricultores familiares. Do número total de estabelecimentos agropecuários do Semiárido, 1.321.862, quase 88%, 1.160.799, se enquadram na categoria dos que geraram como renda menos de dois salários-mínimos por mês. Diante desse quadro, a solução seria a transposição? Claro que não. Se ela se destina ao abastecimento urbano ou à irrigação de fruteiras para exportação, o que é uma opinião estulta e desprovida de informações, não importa. O que importa é pensar o que fazer para encontrar soluções para o Semiárido. De início, recomenda-se afastar dois reducionismos que têm impregnado as intervenções públicas. O primeiro é pensar que a solução seria eminentemente hidráulica, armazenamento e/ou transporte da água. O segundo seria propor como solução a convivência com a seca, entendida, simplesmente como a reprodução das condições sociais, sem contemplar a prosperidade.

A agricultura moderna só é possível nos distritos de irrigação, onde se combinam as disponibilidades de água, solos sedimentares profundos e energia. Isto só é viável em 5% da área do Semiárido.

O distanciamento dos reducionismos começa por tentar entender o que é o Semiárido Brasileiro, que não é tão árido, vis-à-vis outros semiáridos do ponto de vista da precipitação. Há semiáridos na Austrália, na Argentina e no Chile que chovem menos, mas nos quais é possível praticar a agricultura, seja de plantas de ciclo curto, como longo. As limitações do nosso Semiárido são mais severas porque existe uma combinação viciosa de déficit hídrico com solos rasos, o que limita, em muito, a vida vegetal. Comentários feitos lá atrás por sir Richard Francis Burton em seu livro The High Lands of Brazil (1869)  e por Euclides da Cunha em Os Sertões (1902), apontam para a impossibilidade de praticar uma agricultura que traga retornos na caatinga, a menos que se pratique a irrigação de vazante nas várzeas e margens, palavras de Richard Burton, ou que se pratique a pecuária extensiva com baixíssima capacidade suporte ou relação animal/área de pastoreio, nas palavras de Euclides da Cunha. Em síntese, agricultura moderna e sustentável só é possível nos distritos de irrigação, onde se combinam as disponibilidades de água, solos sedimentares profundos e energia. Isto só é viável em 5% da área do Semiárido, pois o resto, além dos déficits hídricos, é constituído por áreas nas quais os solos têm como material originário a formação cristalina ou a formação cristalina recoberta por materiais arenosos. São rasos e pedregosos. Onde há formações sedimentares, as chapadas e parte do Agreste, a agricultura moderna e sustentável é possível, mas isso corresponde a menos de 20% da área total do Semiárido.

Pensar soluções racionais e que levem em conta as limitações do Semiárido implica relativizar o reducionismo hídrico, que nasce no Império (com a cogitação de Pedro II em vender as joias da coroa para custear açudes) e se mantém até hoje nas condutas das agências federais, sobretudo do DNOCS, e cancelar os programas de convivência com a seca, concebidos pelo MDA, que servem apenas para criar  um clientelismo que alimenta o neo-coronelismo e os grotões de atraso de onde parte da sociedade política se reproduz.

Soluções racionais não interessam aos políticos do Nordeste que se perpetuam eleitoralmente pela via da “indústria da seca” e pela via do clientelismo assistencialista praticado pelo MDA e governos do PT.

Pensar racionalmente o Semiárido não é impossível. Têm-se, pelo menos, quatro sugestões que merecem ser lembradas. A primeira delas vem do GTDN, coordenado por Celso Furtado, que na década de 1950 recomendava, além de tópicas soluções hidráulicas, a remoção de parte da população para colonizar a pré-Amazônia no Maranhão e a integração mediante cadeias as atividades produtivas do Semiárido e da Mata Atlântica, o que também foi pensado durante o enclave holandês que durou de 1630 a 1654. A segunda foi o Projeto Base Zero, concebido pelo engenheiro mecânico José Artur Padilha, que consiste na construção de barramentos em forma de arco romano deitado que quebrem a velocidade do escoamento das chuvas, o deflúvio ou runoff, e orientem a vazão para baixadas protegidas com pedras para evitar a evaporação elevada. Este procedimento, que supõe uma gestão de microbacias hidrográficas, deve ser implantado como projeto coletivo de produtores, tem capacidade de estabelecer umidade permanente nas baixadas com crescimento da flora e da fauna. O Projeto Base Zero deve também ser acompanhado de medidas contra o desmatamento da caatinga e de formação de APAS. A terceira sugestão seria a boa gestão dos recursos hídricos existentes mediante redução de perdas e desperdícios, otimização do uso, reuso etc., como preceitua o engenheiro agrônomo e pesquisador da Fundação Joaquim Nabuco, João Suassuna. Faça-se justiça, João Suassuna foi o primeiro pesquisador brasileiro a criticar a Transposição do São Francisco antes de as obras terem início, oferecendo a alternativa de gestão criteriosa dos recursos hídricos, cunhando a expressão, Solução hidro(i)lógica. A quarta e última sugestão vem do Fórum Brasil, criado por Alysson Paulinelli, no bojo das discussões sobre o potencial dos biomas brasileiros e foi concebida pelo engenheiro agrônomo e pesquisador Amilcar Baiardi, que vos escreve. A mesma prevê que na Depressão Sertaneja, parte da caatinga mais imprópria para a agricultura convencional, com base no estado da arte das tecnologias, se crie um módulo avançado de agricultura e pequena pecuária, utilizando a água salobra proveniente das perfurações (cabe esclarecer que os poços artesianos perfurados no Semiárido quase nunca produzem água doce) para culturas hidropônicas, para carcinicultura e cultura de algas, tudo integrado, com aproveitamento de subprodutos e com viabilidade econômica demonstrada.

Soluções racionais não interessam aos políticos do Nordeste que se perpetuam eleitoralmente pela via da “indústria da seca” e pela via do clientelismo assistencialista praticado pelo MDA e governos do PT. Preferem gastança pública, o mais do mesmo, como recentíssimo projeto financiado pela BNDES e pelo FIDA, denominado Sertão Vivo, que receberá R$ 1,75 bilhão para 430 mil famílias, a serem selecionadas pelo Consórcio Nordeste. Enquanto isso a região permanece estagnada relativamente. Cinco décadas de fundos constitucionais não fizeram o Nordeste ter uma participação maior no PIB nacional. A região continua com o número de beneficiados pela Bolsa Família sendo maior que o número de contratados com carteira assinada, tendo a arrecadação federal menor que as transferências constitucionais da União, como já informado pela Gazeta do Povo. O Pacto federativo não pode perenizar esta dependência. Corrigi-la deve ser uma questão de honra para os nordestinos e nada tem que ver com ameaças divisionistas atribuídas ao governador Romeu Zema, que apenas chamou atenção para essa aberração de mais de 50 anos de desequilíbrio fiscal do Nordeste.

Amilcar Baiardi é engenheiro agrônomo e pesquisador, professor aposentado da UFBA e da UFRB, catedrático da Academia Brasileira de Ciência Agronômica e dá aulas na pós-graduação da Universidade Católica do Salvador.

Conteúdo editado por:Bruna Frascolla Bloise
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