
Ouça este conteúdo
A democracia brasileira é jovem e ainda está em construção. Embora possamos nos orgulhar de seu funcionamento, ela não é plena, pois a participação popular segue limitada. A cada dois anos, milhões de brasileiros são convocados a votar de forma obrigatória em candidatos que, muitas vezes, pouco representam seus anseios. Entre uma eleição e outra, as grandes decisões do país recaem sobre o Congresso Nacional ou sobre o Supremo Tribunal Federal (STF), sem que a população seja ouvida diretamente. É imperativo que o Brasil adote mecanismos mais robustos de democracia representativa, nos quais a participação ativa do cidadão seja a regra, e não a exceção.
É legítimo perguntar: qual decisão deve ter mais peso em uma democracia madura? A de um tribunal ou a da própria população? A democracia brasileira, ao restringir a soberania popular ao voto obrigatório e ao monopólio das instâncias institucionais, transforma-se em uma espécie de pseudodemocracia: formalmente representativa, mas substantivamente distante do povo.
A democracia brasileira não pode se resumir a um ato mecânico de apertar botões na urna a cada dois anos. Ela precisa ser ampliada, aperfeiçoada e reinventada. Precisamos devolver ao cidadão o poder de decidir, de forma direta e contínua, sobre os rumos do país
Outros países mostram que é possível ampliar a participação popular. A decisão do Reino Unido de deixar a União Europeia, por meio do Brexit em 2016, embora controversa em seu resultado, é um marco inegável do poder da deliberação popular. Nos Estados Unidos, referendos e consultas populares ocorrem regularmente em nível estadual e municipal. São instrumentos que permitem à população deliberar sobre questões concretas, que afetam sua vida cotidiana e, de certa forma, dar respostas para discussões intermináveis.
O Brasil já trilhou, ainda que timidamente, esse caminho. Em 1993, realizou-se um plebiscito para definir a forma e o sistema de governo. Em 2005, outro plebiscito questionou a proibição da venda de armas de fogo e munições. Ambos mostraram que a sociedade brasileira é capaz de debater e decidir temas relevantes de forma responsável. Mas, desde então, o silêncio se instalou. Não se convocam mais consultas nacionais, e a soberania popular parece ter sido arquivada como um recurso excepcional.
Por que não consultar a população sobre pontos polêmicos da reforma política? Ou sobre os temas do sistema tributário, que há décadas penaliza a classe média e os mais pobres? Por que não ouvir os brasileiros sobre privatizações, exploração de recursos naturais ou mudanças no sistema previdenciário? Vivemos ou não em uma democracia? Decisões com tamanho impacto social não deveriam ficar restritas a gabinetes de Brasília ou a interpretações do Judiciário. A participação popular plena é crucial para o amadurecimento de qualquer democracia.
Outro pilar para uma democracia mais madura é a discussão sobre o voto facultativo. No Brasil, o voto é obrigatório para a maioria dos cidadãos, sob a justificativa de que isso garante maior participação e representa um dever cívico. Contudo, a obrigatoriedade pode levar a um voto desinformado ou desinteressado, onde o eleitor comparece às urnas apenas para evitar multas e sanções.
Países como Estados Unidos, Canadá, Alemanha e Reino Unido adotam o voto facultativo, e a experiência demonstra que, embora a taxa de comparecimento possa ser menor em algumas eleições, o voto tende a ser mais consciente e engajado. A liberdade de escolher participar ou não é um reflexo da autonomia do cidadão e pode, paradoxalmente, levar a um eleitorado mais politizado e interessado. A transição para o voto facultativo, acompanhada de amplas campanhas de educação cívica, poderia ser um passo importante para amadurecer a nossa democracia, transformando o ato de votar de uma obrigação em um direito exercido com convicção.
O financiamento da democracia brasileira é outro ponto que clama por revisão. Atualmente, o Fundo Eleitoral e o Fundo Partidário destinam bilhões de reais para financiar campanhas e a manutenção de partidos políticos. Embora essenciais para o funcionamento do sistema representativo, a concentração desses recursos nas mãos de cúpulas partidárias e a percepção de que o dinheiro público não retorna em maior participação popular geram desconfiança e questionamentos.
A proposta é transformar o Fundo Eleitoral e o Fundo Partidário em um "Fundo da Democracia" para financiar o funcionamento de uma democracia plena. Em vez de priorizar o financiamento de estruturas partidárias, esses recursos poderiam ser direcionados para custear a realização de plebiscitos e referendos, campanhas de esclarecimento sobre os temas em votação e o desenvolvimento de plataformas que facilitem a participação cívica. Tal medida não apenas democratizaria o uso do dinheiro público, mas também incentivaria uma cultura de participação e decisão coletiva, fortalecendo a legitimidade do processo democrático.
No Brasil, a tecnologia pode ser uma aliada decisiva. Já temos uma Justiça Eleitoral altamente digitalizada, com expertise para organizar processos seguros e ágeis. Por que não adaptar essa estrutura para plebiscitos e referendos nacionais regulares? Por que não estimular o uso de plataformas de participação digital, auditáveis e transparentes, que permitam ao cidadão se pronunciar sobre temas relevantes?
A democracia brasileira não pode se resumir a um ato mecânico de apertar botões na urna a cada dois anos. Ela precisa ser ampliada, aperfeiçoada e reinventada. Precisamos devolver ao cidadão o poder de decidir, de forma direta e contínua, sobre os rumos do país. Isso exige reformas corajosas: ampliar consultas populares, tornar o voto facultativo e redirecionar recursos para fortalecer a soberania popular.
Se a Constituição afirma que “todo o poder emana do povo”, é hora de levar essa frase a sério. O Brasil só será uma democracia plena quando a vontade popular deixar de ser um adereço simbólico e se transformar no centro vivo de nossas instituições.
Renato de Sá Teles é professor universitário na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e doutor em Matemática Aplicada.
Conteúdo editado por: Jocelaine Santos



