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| Foto: Marcos Tavares/Thapcom

Num cibercafé em Xangai, Hsin Lo ouve um gemido na estação ao lado e vê um jovem estirado no chão, cuspindo sangue. Assustado, chama a ambulância. Mas Wu Tai, 24 anos, que estivera jogando por 19 horas sem comer, beber ou usar o banheiro, não resistiu e faleceu ali mesmo. Depois disso, surgiram relatos de mortes semelhantes em outras partes do mundo.

O comportamento humano é alterado pela disponibilidade da tecnologia ou o ser humano se comporta como tal independentemente dela? E ainda: será que se desenvolve o vício por causa de internet, celular ou redes sociais? Talvez não haja uma única resposta, mas a conexão móvel, o acesso fácil à internet e a dinâmica das mídias sociais propiciam o desenvolvimento de comportamentos verdadeiramente adictos.

Estabelecer limites é o ponto crucial na luta contra qualquer dependência. Psicólogos, psiquiatras e grupos de autoajuda alertam: evite o primeiro gole, garfada, aposta. Mas, diferentemente de outros comportamentos abusivos (comer ou beber demais, por exemplo), é difícil definir o que é exagero em tecnologia. Como saber se passamos do limite?

Estabelecer limites é o ponto crucial na luta contra qualquer dependência

É uma utopia pensar que podemos abrir mão do celular por completo. A Motorola entendeu este dilema e aproveitou um estudo de Nancy Etcoff, da Universidade Harvard, para desenvolver um teste para avaliar o nível de dependência. Chamado “Phone-Life Balance” (Equilíbrio Celular-Vida), o teste lançado em 2018 abre de forma muito clara: “Você controla seu celular ou o celular controla você”. Através de algumas perguntas sobre o uso do celular, você começa a perceber que muitos hábitos são dependência psicológica do aparelho: 53% dos entrevistados da Geração Z disseram que o smartphone era seu melhor amigo. Como se chegou a isso?

Analisando as redes sociais, percebemos alguns mecanismos mentais que são ativados e que desenvolvem aquela necessidade do “só mais um pouquinho”. No livro Irresistible, Adam Alter destaca que as mídias sociais oferecerem algo poderoso que gera uma sensação de bem-estar: o “feedback instantâneo”. Curtidas, compartilhamentos e comentários são inúmeras formas de satisfazer o ego. Quando se fala de dependência tecnológica, todos estes fatores estão presentes.

As redes sociais deram visibilidade ao invisível. Pela primeira vez, celebridades e cidadãos comuns competem por atenção e “carinho” em condições iguais. Vimos surgir muitos “joões-ninguém” que, por meio de seus canais, se tornaram conhecidos, poderosos e ricos. O curioso é que, para um grande público, eles ainda são anônimos, mas para outros são estrelas. Minha filha me perguntou quem era Silvio Santos. E fez um escândalo quando encontrou uma blogueira no aeroporto – nem lembro o nome, mas sei que tem 1 milhão de seguidoras.

Leia também: A tecnologia é má? (artigo de David Brooks, publicado em 4 de dezembro de 2017)

Leia também: As redes sociais digitais: necessidade ou vício? (artigo de Tania Tait, publicado em 28 de abril de 2014)

Aliás, palavra curiosa esta que utilizamos para definir a popularidade nas mídias sociais. “Seguidores”, no meu vocabulário, são os de seitas e outras atividades obscuras. Crianças e adultos “seguem” seus “ídolos” quase cegamente. Poucos percebem a qualidade dos conteúdos, cada vez mais superficiais. Assim, são facilmente manipuláveis tanto por pessoas como por algoritmos.

A superexposição aumenta a sensação de que estamos sendo julgados o tempo todo. O mecanismo mental de se alimentar de likes leva ao ponto de darmos atenção demais à fala do outro. O adulto pode filtrar comentários e não se deixar afetar tanto. Mas, para os adolescentes, em formação física, mental e moral, isso é uma covardia.

Do outro lado da tecnologia estão profissionais treinados em técnicas de como desenvolver jogos viciantes, como fazer com que a audiência se torne mais engajada – outra palavra curiosa e oportunamente usada em vez de “viciada”. Não é a toa que o termo “gamificação” se tornou um mantra entre profissionais de marketing que buscavam atrair cada vez mais clientes “engajados”. Em seu livro Hooked (“enganchado” ou “fisgado”, mas que também quer dizer “viciado”), Nir Eyal, professor de Psicologia Comportamental da Universidade de Stanford, egresso do mundo de desenvolvimento de games, explica na “Matriz da Manipulação” como mexer na cabeça das pessoas para alcançar sucesso com um produto. Ele até reconhece que pode causar adicção, mas alega que menos de 2% desenvolvem uma “dependência negativa” (como se houvesse dependência positiva...).

A superexposição aumenta a sensação de que estamos sendo julgados o tempo todo

Reparem na covardia desta relação: de um lado, jovens em formação, com dificuldades normais da adolescência; do outro, PhDs, especialistas, algoritmos e inteligência artificial trabalhando para encontrar o que seduz, o que move, o que “engaja”. Quem você acha que ganha esta batalha?

Não estamos exagerando. Sempre tivemos ondas de novas tecnologias sendo incorporadas à sociedade, mas desta vez é diferente. O impacto será profundo e nefasto. Há um número crescente de pesquisas mostrando as consequências de as novas gerações terem crescido inconscientemente dependentes da tecnologia. Novas doenças – transtornos psicológicos – já estão catalogadas, como o “Fear of Missing Out” (“Fomo”, “medo de ficar para trás”), uma ansiedade exacerbada pela fobia de perder alguma coisa na internet. Já está provado que o uso contínuo de smartphones, mídias sociais e jogos on-line compromete o sono, reduz a memória, piora notas escolares, gera ansiedade e depressão e, cada vez com mais frequência, mortes.

A internet passa uma sensação dúbia. Podemos rapidamente editar e apagar fotos que não nos agradam; se errarmos, temos o poder de corrigir. Em contrapartida, o que foi para a nuvem é para sempre, então ficamos impotentes. Casos de cyberbullying, fotos vazadas, desafios como o Baleia Azul levam jovens a terminar precocemente suas vidas. A geração que vive na sensação de que “tudo pode”, com baixíssima resistência a frustrações, tem dificuldade de discernir o real do virtual – quando as coisas dão errado, é só reiniciar a “fase”.

Leia também: O fim da nossa lua-de-mel com a tecnologia digital (artigo de David Sax, publicado em 21 de novembro de 2017)

Leia também: A tecnologia e o futuro do emprego (artigo de José Pio Martins, publicado em 29 de março de 2018)

Será que toda uma geração se tornará viciada em tecnologia na forma de smartphones, jogos on-line ou redes sociais? Muito em breve será imperativo um debate sobre o papel e a responsabilidade dos desenvolvedores dessas ferramentas tecnológicas. Não será fácil, daqui a alguns anos, para os milhares de jovens cujos comportamentos foram alterados imperceptivelmente, sem terem a estrutura emocional necessária, lidar com a realidade. A procura por termos como “detox digital” e “dependência tecnológica” cresceu 65% nos últimos quatro anos, segundo o Google Trends. Talvez haja uma luz no fim do túnel, mas, como se diz, o primeiro passo para a recuperação do adicto é ele admitir que tem o problema. Chegou a hora de examiná-lo com a atenção que o tema exige, porque as consequências serão para sempre.

Eduardo Muniz é CEO da consultoria e agência digital Simplie e professor de Comportamento do Consumidor Digital, E-commerce e Marketing Digital na pós-graduação da ESPM, FGV e FIA-USP.
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