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McDonald’s em São Petersburgo em 2004. Para Tom Friedman, dois países com McDonald’s jamais entrariam em guerra.
McDonald’s em São Petersburgo em 2004. Para Tom Friedman, dois países com McDonald’s jamais entrariam em guerra.| Foto: Dirk Ingo Franke/Wikicommons

[Nota da tradução: Este texto do cientista político Gladden Pappin é de quando estourou a guerra na Ucrânia. As alusões temporais a eventos próximos (como "semana passada" etc) ficaram, obviamente, datadas. Mas não a análise do quadro geral. Por isso publicamos agora, com o estouro de mais uma guerra em pouco mais de um ano.]

Veja se você consegue identificar o autor da seguinte fala:

"No começo dos anos 1990, quando o mundo emergia da Guerra Fria, a Rússia foi bem-vinda ao sistema financeiro global e teve acesso as mercados de capital global […]. O mundo beneficiou-se dos dividendos de uma paz global e da expansão da globalização.

"A invasão russa à Ucrânia deu um fim à globalização que experimentamos nas últimas três décadas.”

Se sua reação for similar à minha, você deve se dar conta de que o cerne é similar à literatura do “fim do fim da História”, que se tornou comum desde 2016, só que tocando no conflito atual como um pretexto para reiterar o argumento básico. O autor dessa observação, porém, não é nenhum pós-liberal crítico da “Longa Década de 1990” querendo usar o conflito na Ucrânia para reforçar o seu argumento. Em vez disso, o autor dessas notas (que foram publicadas ontem) é Larry Fink, diretor executivo da BlackRock: a maior firma de investimentos do mundo, e um símbolo da própria globalização.

Se alguém for capaz de reconhecer que as condições de possibilitar a globalização chegaram ao fim, há de ser alguém à frente de uma firma global de investimentos. É certo que Fink está atrasado em alguns anos. Quando as insurgências populistas de 2016 deram as caras, o fim da globalização já estava bem encaminhado. Mas, como Trump tinha que ser negado a qualquer custo, as observações sobre as teses de “fim da História” inspiradas por Fukuyama em geral apareciam em periódicos como o American Affairs [isto é, o periódico do próprio Pappin, um pós-liberal].

Ironicamente, nos primeiros dias da invasão russa à Ucrânia, alguns comentadores correram para dizer que a invasão, de alguma maneira, representava um golpe devastador nos opositores intelectuais e políticos do liberalismo no Ocidente: como Putin criticou o liberalismo e agora também começou uma guerra injusta, os críticos do liberalismo são culpados por associação, ou algo assim. (Não importa que, em sua fala à conferência do Conservadorismo Nacional em Bruxelas ontem, Mateusz Morawiecki, primeiro ministro da Polônia, também tenha identificado o liberalismo e sua excessiva extensão como causas remotas do colapso do mundo pós-1990.) Um desdobramento do argumento alegava que análises pós-liberais e antiliberais de alguma maneira tinham menos apelo: com os republicanos se unindo aos democratas no clamor pela participação dos EUA no conflito, críticas pós-liberais teriam de ser deixadas de lado.

Um elemento chave do site Post-Liberal Order, porém, que é a análise pós-liberal não é nem uma mera exortação, nem uma mera evocação de alguma plataforma política futura. Em vez disso, a análise pós-liberal afirma que as condições políticas emergentes no mundo envolvem o abandono do liberalismo. O liberalismo ficou frágil e nervoso, e já há competição entre ideologias e sistemas políticos para substituí-lo.

Como a observação de Fink indica, o rápido colapso da ordem liberal no começo da invasão russa confirma o argumento, em vez de negá-lo. Para isto, farei cinco observações (algumas das quais já fiz antes) a respeito das características emergentes do nosso mundo pós-liberal.

1. A ordem internacional “baseada em valores” há muito deixou de existir, mas os líderes ocidentais continuam relutando, sem querer se reajustar.

A prioridade da geopolítica sobre o liberalismo internacional apareceu rápido. Países que não se alinharam com base em valores agora dividem a mesma linha no que concerne à situação na Ucrânia; países que se alinharam em valores têm diferentes perspectivas baseadas em suas diferentes situações geopolíticas. Embora situações como essa sejam lugar comum, o seu reconhecimento tem sido constantemente obscurecido no mundo pós 1990, no qual se dizia que o próprio liberalismo era a base da ordem internacional.

Em semanas recentes, burocratas norte-americanos rodaram o Báltico, e hoje o presidente Biden visita a Polônia. À época da visita de Trump (no verão do seu primeiro ano na presidência), Washington e Varsóvia eram vistas como emblemas da ascensão populista-conservadora que incluía tanto o partido polonês Lei e Justina como Trump. Agora a Polônia e a Hungria estão aceitando refugiados da Ucrânia que fazem as migrações de 2015 parecerem pequenas (em proporção à população local). Ao mesmo tempo, a Hungria tem andado preocupada com os perigos de quaisquer tentativas ocidentais de escalar o conflito.

Numa entrevista dada à revista Mandiner várias semanas atrás, perguntaram ao Primeiro Ministro Viktor Orbán o que ele achava das principais características de uma ordem internacional liderada pela China. Embora tais características ainda não estejam claras, disse ele, “uma coisa é certa: os anglo-saxões querem que o mundo reconheça a sua posição como moralmente correta. Para eles não basta aceitarmos a realidade do poder; querem, também, que aceitemos que as coisas que eles pensão são certas. Os chineses não têm tal necessidade.”

Quanto mais rápido os líderes ocidentais pararem de se perplexar com a necessidade de estreitar os seus laços com a Europa central, melhor. Ainda assim, à ocasião da visita do presidente Biden hoje à Polônia, o repórter da Associated Press se dava ao trabalho de enfatizar que a “Polônia também é um aliado complicado, cujos líderes populistas são acusados por alguns parceiros europeus de desdenhar de normas democráticas.” Com a próxima eleição da Hungria em 3 de abril, podemos esperar apontamentos similares por toda a imprensa ocidental.

No médio prazo, até a manutenção da força do Ocidente em sua própria esfera vai exigir um distanciamento da típica abordagem “anglo-saxã”. Uma Nova Rota da Seda da OTAN focaria em construir a infraestrutura regional, fábricas e cadeias de suprimento integradas, além do óbvio investimento em defesa. Na Europa Central e no Leste Europeu, iniciativas como o Grupo Visegrád e Três Mares já deram passos nessa direção. Mas a situação só pode melhorar abandonando a imposição de valores culturais alienígenas e começando uma guinada para o investimento duro.

2. O capitalismo liberal não acredita mais no seu próprio poder para manter o liberalismo

A carta de Fink e as reações empresariais à invasão russa na Ucrânia demonstram de maneira mais ampla que os capitalistas liberais não acreditam mais na capacidade dos mercados de capitais de criar liberais. Cito mais uma vez a carta de Fink:

Essas ações tomadas pelo setor privado demonstram o poder do mercado de capitais: como os mercados podem prover capital àqueles que trabalham de maneira construtiva dentro do sistema, e o quão rápido podem negá-lo àqueles que trabalham fora. A Rússia foi essencialmente cortada dos mercados de capital globais, demonstrando o compromisso das principais companhias em operar de modo consistente com seus valores centrais. Essa ‘guerra econômica’ mostra o que podemos alcançar quando companhias, apoiadas pelos seus stakeholders, se unem contra a violência e a agressão.” (Ênfase no original)

Desde a década de 1990, há uma crença generalizada na capacidade do capitalismo de gerar condições políticas liberais e assim constituir um elemento central da “ordem liberal baseada em valores”. Típico disso eram os tragicômicos livros de Tom Friedman, que articulou a famosa “Teoria dos Arcos Dourados da Paz Mundial” – que dois países com McDonald’s jamais entrariam em guerra um contra o outro. Se os liberais ainda acreditassem no poder do capitalismo de espalhar a democracia liberal, estariam clamando pela abertura de mais franquias do McDonald’s na Rússia, em vez de encerrar as atividades lá!

Em vez disso, o sistema empresarial global foi instrumentalizado como arma. Do alto de sua posição no pináculo do sistema financeiro internacional, empresas ocidentais tentaram “cancelar” [“deplatform”] a Rússia — com consequências que vão se desenrolar nos próximos anos, provavelmente não ao nosso favor.

3. Cadeias de suprimento globais são um risco de segurança

A crise precipitada pela invasão russa à Ucrânia também fez as empresas e governos ocidentais reavaliarem a sua dependência em relação a cadeias de suprimentos globalmente distribuídas. Outra vez, uma visão previdente da política industrial teria identificado esse fator de risco anos atrás – e, de fato, essa foi uma motivação no desenvolvimento de uma política industrial moderna na American Affairs. Fink de novo:

E embora a dependência da energia russa esteja sob os holofotes, as empresas e governos também irão olhar de modo mais amplo para as suas dependências em relação a outros países. Isso pode fazer as companhias levarem as suas operações para casa ou para os vizinhos, resultando numa retirada mais rápida de certos países. Outros, como o México, o Brasil e os Estados Unidos, ou os polos industriais do sudeste asiático, podem se beneficiar.

Por anos, argumentou-se de modo similar. Quem fez muito isso foi Michael Lind (veja-se, por exemplo, seu “Trade Wars Are Strategic Sector Wars”, na American Affairs, ou seu “The Return of Geoeconomics”, no National Interest).

Cadeias de suprimento globais, na indústria, não são o único fator de risco. Durante a pandemia de covid, a fraqueza da cadeia de suprimentos médicos se tornou evidente. Os Estados Unidos não eram capazes de fabricar as próprias máscaras de maneira econômica ou em escala, quanto menos vacinas. Em locais pátrios onde a fabricação de máscaras disparou (como no Texas), empresários locais foram negligenciados pelo governo em licitações que não levavam em conta se a fabricação era nacional ou estrangeira.

Por fim, no despertar da eleição de 2020, o risco à cadeia de suprimentos de informação se revelou. Isto nos leva à quarta característica da ordem pós-liberal emergente, a saber:

4. A internet global está no fim

Recentemente dei uma olhada nos slogans empresariais das últimas décadas. A a maioria das marcas populares dos EUA se vê como empresas globais que espalham valores globais – e as empresas de tecnologia foram uma parte crucial dessa empreitada. A missão empresarial do LinkedIn é “conectar os profissionais do mundo e fazê-los mais produtivos e exitosos”; o PayPal busca “construir a solução mais conveniente, segura e de melhor custo-benefício da internet”; a Amazon, “ser a empresa mais focada no cliente da Terra” (ênfases minhas).

As aspirações globais por trás das marcas de tecnologia dos EUA deram com os burros n’água. De fato, as aspirações das plataformas de Big Techs de dominarem a cadeia global de suprimento de informação é parte do que instigou reações em semanas recentes.

Como notei num texto anterior no Postliberal Order, a internet aberta e global já foi substituída por uma multipolar. A China se rodeia por um Grande Firewall, e os poderes ocidentais impuseram uma Cortina de Ferro Digital à Rússia. A consequência desses movimentos vão levar algum tempo para se desenrolarem. Mas, enquanto pensamos na “internet global e aberta” como tendo se retirado para o setor norte-americano, na verdade a “internet global” simplesmente se dividiu em diferentes setores com características específicas. No setor norte-americano, por exemplo, “mídia estatal” estrangeira é identificada com marcas específicas, mas “mídia estatal” ocidental supostamente não existe.

Se o resto da “internet global” for mesmo só o “setor norte-americano”, o que podemos esperar é uma tensão maior entre as plataformas de tecnologia e os Estados nacionais que divergem da linha norte-americana — em qualquer assunto, desde a política externa até questões domésticas.

5. As taxas de natalidade vão importar

Por fim, num ambiente de elevado interesse em segurança nacional, a atenção com a taxa de natalidade continuará a crescer. Depois de um fracasso amplamente reconhecido da política migratória da Europa em 2015, é óbvio que o declínio da fertilidade não pode ser resolvido importando populações substitutas – especialmente populações que não se integram com a cultura nativa e oneram, em vez de aliviar, os serviços sociais.

Recentemente, circulou muito pelas redes sociais um mapa indicando a porcentagem de diferentes populações que estavam dispostas a morrer pelo seu país. Os países europeus ocidentais, que sofreram o duplo golpe da queda da natalidade nativa e (depois de 2015) a chegada de grandes populações migrantes, mostraram, sem surpresas, pouca disposição para morrer pelos seus países.

Em vez disso, é nas populações culturalmente integradas e orientadas pela valorização da família da Europa central e do Leste que essa disposição a morrer pelo país continua alta. Quando uma população está em crescimento, orgulhosa de sua cultura e patriótica, os pais têm mais coisas em jogo e os cidadãos se sentem mais devotados a um senso comum. Enquanto a Europa ocidental acorda do seu sonho de segurança, o interesse nas políticas natalistas da Europa Central e do Leste atrairão a atenção dos governos nacionais e locais pela Europa.

Longe de ser um momento de restauração do liberalismo, as características da ordem pós-liberal emergente estão se tornando mais claras.

Gladden Pappin é teórico político da Universidade de Dallas e Professor Visitante no Matthias Corvinus Centrum, em Budapeste. Este texto foi traduzido do Post Liberal Order com autorização.

Conteúdo editado por:Bruna Frascolla Bloise
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