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Existo, mas não sou. Pelo menos oficialmente.

E quantos brasileiros vivem nesta condição? Intervenção é uma palavra pesada, sombria, que carrega acusação, culpa e vergonha para quem agiu fora da lei, ou pelo menos assim deveria ser. Não é a situação de muitos que sofrem as longas e exaustivas conseqüências de processos dessa natureza, na qual me encontro. Tenho a sensação de viver no limbo do meu país; com a cidadania em suspense.

Após a intervenção no Banco Bamerindus do Brasil em 1997, terceiro banco privado no ranking nacional e segundo em número de agências, uma nova vida teve início para seus acionistas e gestores.

O dia-a-dia sob um processo de liquidação extrajudicial exige um aprendizado longo, profundo, intenso, que obriga a reformulação de conceitos, crenças, sentimentos. E haja estrutura emocional.

Nem todos conseguem redesenhar a arquitetura da própria vida incluindo um diálogo íntimo com princípios e valores, além da compreensão exata do que é dignidade. A superação de um mal-estar que envolve a percepção de justiça, leis, jurisprudência e sistemas obsoletos, morosos e políticos por vezes atrofia a ação do cotidiano. Doenças inesperadas levam alguns que não suportam tal peso, portanto estar vivo após um processo de intervenção, tratando-se de pessoas honestas, já é lucro.

Perceber rapidamente que vergonha não faz sentido para quem não teme, e enfrentar o cotidiano exige coragem. Olhar nos olhos daqueles com quem se convive, de modo seguro e tranqüilo, característico dos que não devem, desafia o orgulho. E onde paira o fio tênue do orgulho necessário à integridade?

Aprende-se a conviver com advogados, processos judiciais, documentos que envelhecem no tempo, provas, cópias e tantas coisas mais, simultâneas ao desafio de recomeçar a própria vida econômica, emocional, afetiva, espiritual. Além disso, orientar filhos sem mágoa, revolta, raiva ou ódio. Conviver com perguntas sem resposta junto ao sistema judiciário danifica a auto-estima; o tempo é elástico para esse sistema. Cultiva-se a paciência, a sabedoria, o olhar para o futuro. O passado deixa de ser, o futuro é uma indagação e o presente se faz a cada dia.

A sensação de não-pertencimento, de habitar um purgatório enquanto se espera o julgamento final (e julga-se o que, exatamente?), de estar, mas não ser cidadão por inteiro, pois só se impõem deveres sem direitos, é cruel para a pessoa. Mais do que isso: ela não é.

Só muito recentemente compreendi, ou melhor, aceitei, que o espaço e o trânsito da mulher no universo do poder é, de fato, diferente. Naturalmente quando é sozinha. E do impacto que sofre quando uma "ameaça" paira sobre o seu ser-existir e a coloca no limbo. Aprendi também que um homem desempregado, ao se deprimir por não encontrar emprego, pode facilmente ser amparado por amigos empreendedores, enquanto a mulher que oferece trabalho – não pede emprego - encontra um mercado "difícil".

Cidadania: essa condição existe?

O sentimento de pertencer, integrar, fazer parte das regras de um jogo legal, que implica em direitos e deveres respeitados por ambos os lados, parece inerente ao ser humano, mas não é assim. A justiça se submete à lógica do poder. E isso se estende como teia aos mais diversos e complexos sintomas sociais.

Um processo de intervenção, ao tratar igual a todos os envolvidos - e podem ser muitos –, comete injustiças que se perpetuam ao deixar marcas indeléveis em muitas famílias. As justificativas são de leis anacrônicas, ortodoxas e se constata um judiciário ineficiente.

Embora seja uma questão de essência, pois se refere ao direito de viver na transparência, legalidade e exercer a cidadania, trata-se de vidas que viram do avesso. E depois, como termina? As perdas imensuráveis de toda natureza? Pessoas vivem num limbo, sob acusações que elas e a sociedade não compreendem e um dia tudo acaba. Mas... e a devastação na vida de cada um?

Afinal, o que é ética, senão o respeito, o caráter, o modo de agir, as possibilidades que o país oferece? Maria Christina de Andrade Vieira é consultora e escritora. www.andradevieira.com.br – info@andradevieira.com.br

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