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A iraniana Sakineh Ashtiani foi condenada à morte por apedrejamento por supostamente ter cometido adultério. Sakineh é mais uma das vitimas do regime totalitário iraniano, fortemente enraizado pelo fanatismo religioso. A diferença de tratamento entre homens e mulheres constitui-se em um abismo que os separa, distinguindo e privilegiando os homens em detrimento das mulheres. Enquanto nada acontece em termos de punição ao homem adúltero, à mulher é conferido uma das penas mais cruéis que se pode imaginar: o apedrejamento até à morte.

O caso logo ganhou notoriedade internacional. Questionado se o governo brasileiro poderia intervir em favor da iraniana, o presidente Lula imediatamente recuou, alegando que não poderia interferir em uma decisão de um Estado soberano, sob pena de "virar uma avacalhação". Recentemente, o presidente voltou atrás, afirmando que o Brasil poderia conceder-lhe asilo.

De acordo com o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), a prática de concessão de asilo é uma das características mais antigas da civilização, com registros históricos de 3.500 anos, sendo utilizado nos antigos impérios do Oriente Médio. De acordo com os preceitos do Direito Internacional Público, o asilo consiste no acolhimento, pelo Estado estrangeiro, de pessoa perseguida em seu país de origem, seja por dissidência política, delitos de opinião ou crimes previstos no direito penal comum.

Já a soberania pode ser definida como sendo a autonomia que os Estados possuem, tanto no âmbito interno (no que se refere à sua organização interna), quanto no âmbito externo (seja no poder de celebrar tratados, no respeito mútuo entre os Estados, no seu direito de legislação ou no direito de negociar com outros Estados). A soberania pode e deve ser exercida plenamente, desde que subordinada à ordem internacional vigente. Ainda que exista previsão legal na legislação iraniana – ou no caso de não existir, impere o costume local – a condenação por apedrejamento demonstra ser uma pena cruel e desumana, além de ser desproporcional ao crime supostamente cometido, indo contra a ordem internacional vigente, na qual deve imperar o direito ao contraditório e à ampla defesa, além de uma punição proporcional ao crime cometido.

Tais prerrogativas encontram-se insculpidas na Declaração Universal dos Direitos Humanos. Ora, se o Irã é considerado e reconhecido como um Estado violador de direitos humanos, condenando uma mulher ao apedrejamento por suposto adultério, como se pode respeitar a soberania deste Estado, o qual afronta e desrespeita reiteradamente a ordem internacional em vigor? Nesse contexto, cumpre trazer a tona os conceitos do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH), ramo autônomo da ciência jurídica e dotado de normatividade própria, cuja função precípua é a proteção do ser humano, em especial as vitimas de violações de direitos humanos. O DIDH surge no período pós Segunda Guerra Mundial, após as atrocidades cometidas nos campos de concentração e na perseguição de judeus pelos nazistas, como um referencial ético a orientar a nova ordem internacional, partindo-se da premissa que a proteção do ser humano ultrapassa as fronteiras dos Estados.

De acordo com a jurista Flávia Piovesan, a ideia de proteção do ser humano não deve estar restrita ao domínio reservado do Estado, não se restringindo à jurisdição doméstica do mesmo, uma vez que o tema revela legítimo interesse internacional. Dessa forma, pode-se concluir que resta justificada tanto a pressão internacional pela não-punição de Sakineh, como a concessão de asilo, seja proveniente do Estado brasileiro ou não, preservando a vida e a integridade de mais uma vítima emblemática dos abusos cometidos pelo Estado iraniano contra as mulheres.

Chrystiane de Castro Benatto Paul, advogada especialista em Direitos Humanos, é assessora jurídica da Coordenadoria dos Direitos da Cidadania da Secretaria de Estado da Justiça e Cidadania

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