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Funcionários de jardim de infância limpam calçados de crianças em Yongzhou.
Funcionários de jardim de infância limpam calçados de crianças em Yongzhou.| Foto: AFP

Ao que tudo indica, a resposta da China à pandemia do Covid-19 tem sido bem-sucedida. De acordo com as estatísticas oficiais o número de infectados e de mortos está estável há semanas. Esse desempenho é resultado de medidas enérgicas, como a imposição de uma quarentena às províncias de Hubei e Henan, cuja adoção foi facilitada pelo caráter autoritário do regime. Outros países com regimes autoritários, como Singapura, também estão tendo um bom desempenho no combate à pandemia, enquanto democracias como o Brasil e os Estados Unidos veem os números de infectados e mortos crescer vertiginosamente.

Isso naturalmente levanta a questão: teriam ditaduras uma vantagem no combate a crises como aquela gerada pelo Covid-19? O governo chinês tem argumentado que sim e que isso é uma mostra de que seu sistema político é superior à democracia ocidental. De acordo com um jornal alinhado com o Partido comunista chinês, “governos ocidentais gastaram muito esforço considerando os interesses de minorias” e “jornalistas liberais se importam mais com valores como liberdades e direitos individuais”. A sugestão é de que as autoridades chinesas não precisam se preocupar com essas questão e, por isso, puderam se concentrar no que realmente importa: salvar vidas.

Um estudo em andamento encontrou evidências consistentes com essa narrativa. Não é só China e Singapura: ditaduras em geral têm apresentado um melhor desempenho do que democracias no combate à pandemia. Democracias têm apresentado, na média, 71% mais mortes per capita causadas pela doença. Mas essa diferença é causada pelo regime político? Essa é uma questão difícil de responder. O problema é que o regime político não é a única diferença entre a China e o Brasil ou entre Singapura e os Estados Unidos. Muitas outras coisas variam entre esses países, como o tamanho da economia e a renda per capita, o clima e a geografia, a cultura e a história. É difícil saber se a diferença na prevalência e na mortalidade da pandemia se deve ao regime e não a esses e outros fatores.

Uma estratégia usada por cientistas sociais é “controlar” para diferenças observadas entre os países por meio de modelos estatísticos. Os autores do estudo em questão fazem isso. Mas essa estratégia não ataca o problema das diferenças não observadas. Isso é uma preocupação quando comparamos países cujas diferenças são de difícil mensuração: como medir cultura ou história? Mas ainda há o risco de que o fator decisivo seja algo que sequer consideramos. Cientistas sociais usam diversas estratégias para lidar com esse problema. Elas, contudo, sempre envolvem pressuposições sobre a realidade que nem sempre se sustentam. Os autores do estudo em questão usam uma dessas estratégias (variável instrumental), mas não é claro se uma das pressuposições dessa abordagem (restrição de exclusão) é plausível. Isso é normal: o estudo ainda está em andamento, mas os autores terão de atacar essa questão no futuro.

Não ausência de evidências definitivas, um pouco de teoria e história podem nos ajudar. A concentração do poder político em poucas mãos e a ausência de limites formais ao seu uso permitem que ditaduras tomem medidas enérgicas, impondo sacrifícios à população e arregimentando os recursos da sociedade para canalizá-los a um único fim. Isso permite que elas tenham um bom desempenho no combate a crises, como parece estar acontecendo no caso da pandemia do Covid-19. No entanto, instituições autoritárias não oferecem incentivos para que as autoridades se empenhem no combate a crises em geral.

A principal diferença institucional entre ditaduras e democracias é o fato de que, nas últimas, as autoridades são escolhidas por meio de eleições periódicas e competitivas. Isso permite que a população as puna, negando-se a reelegê-las, quando não responderem com empenho a uma emergência. Isso, por sua vez, oferece um incentivo para que essas autoridades tomem medidas que acreditam que serão bem-sucedidas e bem avaliadas pela população. Ditadores não correm o risco de sofrer esse tipo de punição e, portanto, não são sujeitos a esse tipo de incentivo.

Isso não significa que líderes democráticos sempre vão responder melhor a emergências do que ditadores. Quem é o chefe de governo importa e há líderes mais ou menos competentes para exercer essa função. Também não significa que a população sempre vá punir eleitoralmente as autoridades que respondam de maneira insatisfatória. Mas isso é possível em democracias. Em ditaduras, não.

Protegidos da insatisfação popular, ditadores podem demonstrar um alto grau de desprezo pela vida e pelo bem-estar de seus cidadãos. É verdade que líderes de países democráticos podem demonstrar a mesma atitude. Mas, ao fazê-lo, se sujeitam às consequências eleitorais de seu comportamento. O economista Amartya Sen observa que democracias não deixam seus cidadãos morrerem de fome em massa. Seu ponto não é de que ninguém morre de fome em democracias ou de que não há episódios de fome em massa nesses países. Ambas as afirmações estariam erradas. Seu ponto é de que as autoridades eleitas que não fazem nada durante emergências desse tipo assumem o risco de serem punidos nas urnas. O mesmo não vale para ditadores.

Além disso, mesmo que uma ditadura decida responder a uma emergência, a ausência de um mecanismo institucional de responsabilização das autoridades significa que não há incentivo para que escolham fazer isso de maneira humanitária. Quando a crise é puramente doméstica, ditaduras podem responder intensificando a repressão para que informações sobre a situação real não cheguem ao conhecimento do público e prejudiquem a imagem do regime. A história oferece vários exemplos.

Um vem da própria China. Em 1958, uma fome em massa irrompeu no interior do país. Pesquisadores consideram que a situação foi resultado das políticas agrícolas perseguidas pelo governo. Contudo, o que interessa aqui é como as autoridades responderam à crise uma vez que ela estava instalada. A posição oficial era de que não havia crise. Como conta o historiador Frank Dikötter, em “A Grande Fome de Mao”, o governo continuou exigindo que as autoridades locais cumprissem cotas de produção agrícola, mediante ameaça de punição. Isso oferecia incentivos para que as autoridades locais adulterassem as estatísticas, pintando um cenário de normalidade.

Camponeses que, buscando escapar da forme, migravam para as cidades, onde a falta de alimentos era menor, eram mandados de volta para o interior. Ao mesmo tempo, Pequim dispendeu grandes esforços para ocultar a situação da comunidade internacional. Autoridades estrangeiras eram conduzidas em visitas a fazendas coletivas modelo, criadas e mantidas especialmente com o fim de transmitir uma imagem da situação na área rural do país que não correspondia à realidade. Até hoje o governo chinês não reconhece o papel que as políticas adotadas tiveram em provocar e aprofundar a crise. Essa recusa dificulta, inclusive, que se saiba com certeza a real dimensão da catástrofe. A estimativa mais conservadora é de que ao menos 15 milhões de pessoas morreram em decorrência da chamada Grande Fome.

Ditaduras não respondem de forma desumana a emergências domésticas apenas porque podem, mas, às vezes, porque essa é maneira de tirar vantagem da crise para alcançar objetivos políticos do governo. Esse é o caso da resposta soviética à fome em massa que irrompeu na Ucrânia e em diversas provinciais russas da União Soviética em 1932. Nesse caso também a política oficial foi negar a existência da crise e tomar as medidas necessárias para evitar que informações sobre a situação real chegassem ao conhecimento do público. Essas medidas, contudo, tomaram formas especialmente brutais na Ucrânia, por motivos puramente políticos: o governo soviético viu na fome uma oportunidade de quebrar o espírito do nacionalismo ucraniano de uma vez.

Como conta a jornalista Anne Applebaum, em “A Fome Vermelha”, as fronteiras ucranianas foram fechadas. Proibidas de deixar o território ucraniano em busca de comida, milhares de pessoas foram abandonas à morte nas estradas. O governo soviético se recusou a aceitar auxílio estrangeiro. Agentes humanitários poderiam vazar notícias sobre a situação real. Quando, ainda assim, relatos chegaram à imprensa estrangeira, Moscou arregimentou repórteres subservientes ao regime para desmenti-los. Depois da catástrofe, o governo soviético embarcou em uma operação de acobertamento e passou décadas patrocinando estudos fraudulentos para desmentir e caluniar intelectuais e sobreviventes que apontavam a verdade. Estima-se que cerca de quatro milhões de pessoas morreram durante o chamado Holodomor.

O caráter mentiroso das respostas governamentais nesses exemplos aponta, novamente, para a ausência de eleições periódicas e competitivas em ditaduras. Uma condição para a ocorrência de eleições competitivas é haja liberdade para fazer oposição ao governo. Isso, por sua vez, aumenta a probabilidade de que as mentiras que governantes proferem sejam desmascaradas. Os erros do governo aumentam a chance de sucesso da oposição nas próximas eleições e isso oferece um incentivo para que ela os exponha ao público. As mentiras de ditadores não são submetidas à mesma fiscalização pela oposição. Não por acaso, inicialmente, quando o surto de Covid-19 parecia restrito a Wuhan, o governo chinês também tentou, impedir que notícias sobre a situação real chegassem ao conhecimento do público, perseguindo médicos, acadêmicos e jornalistas independentes.

Isso não é uma coincidência: o traço comum ao atual regime chinês, a China de Mao e a União Soviética é sua natureza autoritária. Em ditaduras não há mecanismos institucionais que incentivem as autoridades a responder a emergências puramente domésticas – e a fazê-lo para salvar vidas humanas, não para proteger a imagem do regime. Ditaduras podem estar tendo um desempenho melhor do que democracias no combate à pandemia do Covid-19. Contudo, a teoria política e a história nos sugerem que, seja qual for a razão para isso, não é porque instituições autoritárias incentivam os governantes a se empenhar para salvar vidas. Elas não fazem isso.

Pedro Vicente de Castro é doutorando em Ciência Política na Universidade São Paulo. Henoch Gabriel Mandelbaum é mestrando em Ciência Política na Universidade São Paulo.

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