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Doutrina Trump: os possíveis efeitos do realismo transacional dos EUA

Revolução de Trump no comércio mundial traz oportunidades para o Brasil
Governo de Donald Trump iniciou investigações para impor novas tarifas sobre tecnologia importada (Foto: EFE/EPA/YURI GRIPAS/POOL)

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Muitos acreditam – especialmente a mídia internacional – que a política externa de Donald Trump é um “caos”, sem princípios ou diretrizes que a justifiquem, sendo apenas fruto de uma “confusão mental”. Um grande equívoco. Antes de adentrarmos na questão propriamente dita, é importante lembrar que existem, ao menos, três lentes possíveis (ou teorias das relações internacionais) que nos ajudam a compreender a política internacional. São elas: 1) o objeto (a natureza/realidade), 2) o sujeito e 3) a fusão entre objeto e sujeito.

A primeira lente originou as teorias realistas, nas quais há um objeto observável – externo ao sujeito que o observa – como o poder, o interesse nacional e a segurança, todos elementos tangíveis. A segunda lente, ao focar no sujeito, deu origem ao idealismo (inclusive o idealismo alemão) e a teorias centradas no indivíduo, que preveem a cooperação econômica, a paz, a interdependência e até uma mentalidade de mercado. Já a terceira lente funde objeto e sujeito em uma unidade, originando abordagens socialistas, construtivistas e críticas nas relações internacionais. Para os construtivistas, não há realidade objetiva: tudo é uma “construção social”. Para os socialistas, a crítica recai sobre o capitalismo e a burguesia e como a revolução pode rompê-los. A metafísica da guerra e dos conflitos atuais resume-se ao confronto entre essas três correntes modernas e suas respectivas cosmovisões. Onde, então, se enquadra Trump?

Não se deve esperar de Trump uma cruzada em prol dos valores ocidentais, mas ao menos uma paz pragmática – mais vantajosa do que os conflitos em andamento

Trump é, ao mesmo tempo, um realista (primeira lente) e um transacionalista (segunda lente) – logo, adota um “realismo transacional” (limitado às vantagens de segurança e comerciais). Assim, a doutrina Trump pode ser resumida na seguinte proposição: como elevar o nível de segurança dos Estados Unidos por meio de negócios vantajosos, que muitas vezes funcionem também como garantias de segurança. Nesse sentido, Gaza pode se tornar um empreendimento imobiliário; na Ucrânia, as terras raras representam um negócio promissor – assim como na Groenlândia –, sem contar as novas rotas marítimas em formação. Até mesmo a barganha envolvendo o Canal do Panamá visa reduzir tarifas cobradas de navios americanos, afastando a ameaça da presença chinesa na região. Para Trump, o soft power é caro e pouco eficaz; seu jogo predileto é o da realpolitik: com um detalhe: evitar ou encerrar guerras enquanto assegura garantias comerciais relevantes para impulsionar a economia americana, saindo como apaziguador ou “vencedor”.

No campo do comércio internacional, o realismo transacional de Trump busca – muito antes do discurso protecionista ganhar destaque midiático – um reequilíbrio de forças. Diversos países impõem altas tarifas sobre produtos americanos. Na visão realista de Trump, os EUA estão “perdendo dinheiro” por causa de nações que mantêm barreiras tarifárias excessivas. Atualmente, Índia, Brasil e China estão entre os países mais protecionistas do mundo, defendendo suas indústrias nacionais enquanto sustentam um discurso maniqueísta sobre vilões e heróis no comércio global. O realismo transacional, nesse caso, busca aplicar o princípio da proporcionalidade, ainda que isso possa gerar instabilidades comerciais no cenário internacional.

Para essa doutrina, o contorno marítimo talvez seja o pilar mais relevante da política externa contemporânea. Não por acaso, em seu discurso de posse, Trump demonstrou preocupação com o Canal do Panamá e as altas tarifas cobradas de navios americanos. Em seu realismo transacional, ele propõe resolver a questão via barganha comercial, ao mesmo tempo em que promove uma reconfiguração estratégica do canal, essencial para a segurança internacional. Outro ponto central é a Groenlândia, cuja importância geopolítica cresce com o derretimento do gelo no Ártico, abrindo três novas rotas marítimas fundamentais ao comércio global – além de seu potencial em terras raras, insumos críticos para baterias elétricas e mísseis balísticos intercontinentais.

A primeira ação militar de Trump também ocorreu nesse eixo marítimo, contra os houthis no Iêmen, que diariamente comprometem o fluxo de mercadorias – inclusive em direção aos EUA. Outro sinal importante vem da possível imposição de tarifas contra navios chineses que atracam em portos americanos. Em 2024, o Escritório de Representação Comercial dos Estados Unidos (USTR, na sigla em inglês) abriu investigação, com base na Seção 301 da Lei de Comércio de 1974, após pressão de sindicatos americanos. A investigação trata do crescimento acelerado da indústria naval chinesa, supostamente impulsionado por práticas desleais: subsídios estatais, empréstimos políticos e insumos abaixo do valor de mercado. Para se ter uma ideia, os EUA contam atualmente com cerca de 80 navios contêineres em operação, enquanto a China possui aproximadamente 5.500, dominando amplamente o setor – com consequências geopolíticas evidentes. Diante disso, Trump propõe revitalizar a indústria naval americana.

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Com seu realismo transacional, Trump evita confrontos diretos e ideológicos com China e Rússia. Em vez disso, firma acordos vantajosos com potências médias (como no caso da Ucrânia), garantindo interesses comerciais e desestabilizando, assim, a lógica das potências autocráticas. Essa abordagem busca fortalecer a segurança dos EUA a partir de pactos comerciais viáveis. No caso ucraniano, a doutrina Trump não considera estratégico financiar indefinidamente uma guerra de atrito; o cessar-fogo proposto segue uma lógica pragmática. Ainda que incerta, a paz é preferível a uma guerra absurda e sem fim. Dessa forma, Trump garante acesso a recursos minerais e terras raras, fundamentais para liderar a guerra tecnológica em curso contra a China.

Em resumo, com seu realismo transacional, Trump poderá: resolver a questão tarifária no Canal do Panamá; obter reciprocidade tarifária e reorganizar a indústria nacional americana; encerrar uma guerra que recai sobre os ombros europeus, explorando as terras raras da Ucrânia; liberar rotas marítimas, neutralizando as ações dos houthis; explorar recursos estratégicos na Groenlândia e abrir rotas de circulação comercial; encerrar programas onerosos de soft power, redirecionando os recursos públicos de forma estratégica; atrair investimentos internacionais para uma zona considerada segura, “friendshoring”. 

Enfim, os ganhos parecem mais concretos do que os observados na política externa desastrosa de Biden. Não se deve esperar de Trump uma cruzada em prol dos valores ocidentais, mas ao menos uma paz pragmática – mais vantajosa do que os conflitos em andamento. O que ainda sustenta o que resta do Ocidente é a maior superpotência militar do planeta e um PIB de quase 28 trilhões de dólares – maior que o da China e da Rússia somados. A ordem liberal e o realismo transacional ainda resistem aos inimigos do Ocidente.

Cezar Roedel, doutor em Filosofia e mestre em Relações Internacionais, é sócio da Roedel Intel Advisor, e membro da Comissão de Relações Internacionais da OAB-RS. Colaborou com projetos do Banco Mundial e atuou na American Chamber of Commerce for Brazil.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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