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Essa concorrência quase que desleal entre carro e ônibus só pode ser alterada se investimento no transporte público for priorizado e fatal, sem medo de se usar uma palavra tão incisiva

Neste momento, todos os sites das prefeituras das capitais brasileiras trazem uma série de sugestões e informações de como se servir do transporte coletivo; ao mesmo tempo, quase todas anunciam grandes obras viárias para melhorar o trânsito. Da lista de quase 30 capitais, neste dia, chama a atenção um corredor exclusivo para ônibus em São Luís do Maranhão, outro em Maceió e uma extensão de linha de ônibus (para o aeroporto!) de Salvador. Na extensa descrição das demais obras, prolifera implantação ou recuperação de vias para incrementar a velocidade do automóvel. Tal fato é uma dicotomia que explicita um "muito falar sobre o necessário transporte coletivo", mas também um "muito fazer para atender ao transporte individual". Neste mesmo momento, em Curitiba, suas ruas recebem em média 500 novos veículos/dia, o que indica crescimento de 7,5%/ano e reitera proporção de um carro para cada 1,8 habitante, uma das maiores do Brasil. Com isso, ficam pequenos números como os 2,26 milhões de passageiros/dia ao longo das nossas vias para ônibus e os 80 mil passageiros/dia na linha com maior carregamento, a Interbairros 2. Ainda neste mesmo momento, o Google revela que há 31 milhões de chamadas para a palavra "ônibus". É muito? Irrisório, se comparado com os 234 milhões para a palavra "carro".

Tais números e porcentuais seguem uma lógica que revela coisas boas e coisas ruins. Os últimos anos no Brasil conhecem melhoria na coleta e destino do lixo urbano, porém incremento na sua produção por habitante; mais produção econômica, mas maiores níveis de poluição atmosférica; maior cobertura de água tratada urbana e maior consumo per capita, porém mais poluição hídrica; aumento de popularização na propriedade de automóveis, mas engarrafamentos constantes; mais consumo de energia elétrica por domicílio, todavia, maior demanda ambiental por hidroelétricas. Tais valores são válidos para o Brasil, para Curitiba e para sua região. Impossível que estejamos todos vivendo em cidades de loucos, a fazer opções irracionais por décadas seguidas. Tal situação tem sido perseguida há muito tempo, a partir de equação onde se atende aos interesses básicos e imediatos e se deixa o enfrentamento dos impactos negativos para o futuro. Se correta a metodologia de análise, Curitiba e região perderam 21% de passageiros por quilômetro rodado nos últimos dez anos. Isso significa, dentre outras coisas, uma feliz maior renda e uma opção possível por veículos particulares, mas também ônibus vazios em algumas linhas, mais engarrafamento, mais poluição, passagens mais caras.

Eu, para escrever essas palavras ou você, leitor, para concordar com as ideias aqui expressas, devemos, antes de nos assustarmos frente a essa realidade, perguntar o que preferimos: andar de carro ou de ônibus? Se a resposta for a primeira, podemos dizer que há sim uma lógica na opção da maioria de nossa população. Individualidade, conforto, capilaridade no tecido urbano, liberdade são atributos vinculados ao transporte individual. Tais atributos são concorrentes para um transporte de massa, mais caro, lotado, com cobertura e conexões que não se adequam ao interesse múltiplo do usuário. Essa concorrência quase que desleal entre carro e ônibus só pode ser alterada se investimento no transporte público for priorizado e fatal, sem medo de se usar uma palavra tão incisiva. Ao se analisar as notícias nos sites das maiores cidades brasileiras, conforme dito acima, a disparidade entre o bom do carro e o ruim do ônibus parece se aprofundar. Reconhecemos que o tempo no engarrafamento aumenta, mas também sabemos que uma hora em ônibus não é a mesma uma hora em um carro; os mesmos 60 minutos são diferentes. Uma eventual perseguição do poder municipal ao veículo individual parece não ter efeito: aumentam-se multas, eliminam-se faixas de estacionamento, fiscalizações ficam acirradas, guincham-se 24 carros/dia em Curitiba e o efeito é ínfimo. Ao contrário, a adesão ao último Dia Mundial sem Carro, com a participação de quase 2 mil cidades no mundo, aqui foi insignificante. Muitos leitores talvez nem tenham ouvido falar sobre esse evento. Reconhecer, publicamente, que andar de carro é bom serviria para embasar políticas muito mais ousadas de transporte coletivo. A oferta de uma tarifa reduzida aos domingos (R$ 1, informo àqueles que tampouco experimentam a tarifa normal, de R$ 2,50) significa um incremento de quase 50% no número de passageiros. Esses passageiros não apenas visitam familiares, mas também consomem, se comunicam, crescem como cidadãos urbanos. O que aconteceria se reproduzíssemos essa mesma tarifa em dia de semana? O que aconteceria se apostássemos todas nossas prioridades viárias na construção e manutenção de um metrô com maior cobertura? Vale o risco.

Clovis Ultramari, arquiteto, é professor na PUCPR.

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