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Economia, direito e a crise sanitária
| Foto: Guilherme Paixão

Em tempos de Covid-19, numa reunião acadêmica virtual com outros filósofos do direito estrangeiros, cujo tema vem epigrafado no título, um dos membros, com sólida formação em economia também, disse que estava pouco otimista acerca da contribuição dos “economistas puro-sangue” para o tema, porque a imensa maioria deles, em razão da formação acadêmica, valora os meios sobre os fins e isso destrói a liberdade humana e o poder de escolher os fins que realmente o favorecem.

Por outro lado, um outro membro disse que, no equacionamento prudencial dos vários bens humanos em disputa (saúde, trabalho, respeito aos pactos, onerosidade excessiva, imprevisibilidade etc.), uma tarefa típica do mundo jurídico, a economia ajudaria, em muito, se ela fosse mais “metaeconômica”, ou seja, considerasse outros valores em jogo, porque o julgamento dos economistas, por ser baseado numa “ciência tão propensa a usurpar as demais” (nas palavras de Frederick Copleston), tende a ser um julgamento extremamente fragmentário da realidade humana, na medida em que os economistas focam em apenas um valor: se uma coisa gera ou não lucro monetário para quem a realiza.

De fato, o tal vírus chinês irá exigir do direito respostas de justiça concreta numa realidade nova. Mas o direito não se esgota em si mesmo, porque tende sempre a ser realizado, em sua concreticidade normativa do justo e numa dada circunstância histórica, o que demanda abertura a outros saberes e, no caso em que vivemos, sem dúvida, ao fator econômico, o qual tem um peso importante, pois os recursos materiais são escassos, bem ao contrário do que prega nossa “Constituição Cidadã”, tão pródiga na concessão de direitos como avara no apontamento das fontes de custeio da maioria desses direitos, mormente daqueles que envolvem uma intervenção material estatal espontânea.

Como o direito e a economia podem atuar em prol do bem comum em tempos de crise? Comecemos pela economia. O dado econômico é caracterizado por ser livre, temporal, incerto, futuriço, subjetivo e social, iluminado por uma teoria econômica – a qual está voltada para a aquisição do necessário para atender às demandas humanas mediadas pelo material – e por uma economia política, apta a guiar a racionalidade instrumental daquela teoria à luz da razão prática.

Mas a economia não fica só nisso. No âmbito de sua teoria, convém haver uma necessária harmonia entre os postulados dessa teoria e a observação empírica, porque os dados, sem a teoria, não nos dizem nada, ao mesmo tempo que uma teoria sem dados lembra mais uma construção quimérica, sobretudo numa matéria tão contingente e relativa. Por isso, a teoria econômica deve se ater a generalizações prováveis – e nunca universais, uma forte tentação –, baseadas em regularidades ou tendências sociais verificáveis.

Como efeito, daqui retiramos uma importante conclusão: a capacidade preditiva de uma teoria econômica é sempre limitada, mesmo virilizada pela economia política que, como ciência prática, caracterizada por um fim prático e por uma pluralidade metodológica, supõe uma racionalidade prudencial, um saber-fazer aqui e agora, infensa a algoritmos ou fórmulas matemáticas, tão típicas da teoria econômica. Mas a economia também sofre de outra forte tentação científica: seus modelos e medições – dito de outro modo, o ferramental cotidiano do economista – devem velar pelo realismo das coisas.

Quanto aos modelos, devem ser buscados aqueles que sejam signos de relações causais reais. Quanto às medições, sempre pautadas por uma notável força retórica dos números, nunca pode se perder de vista que sempre supõem uma simplificação da realidade, porque, quando não tomam apenas seus aspectos quantitativos e ignoram os qualitativos, que também atuam no agir decisório do agente econômico, transformam – numa espécie de salto epistemológico no escuro – em quantitativos outros aspectos que, empiricamente, não o são. Seria, numa analogia tosca, uma espécie de nova busca da quadratura do círculo.

Essa atual visão predominante da economia não foi improvisada. Não surgiu da noite para o dia. Como nosso subdesenvolvimento econômico, é obra de décadas. Décadas de um somatório de posições científicas marcadas por deficiências metodológicas (Friedman), pretensões autorreferentes de verdades econômicas (Hayek e a absolutização do princípio da maximização), desrespeito aos limites cognitivos de dados empíricos (Becker), individualismo metodológico (Schumpeter) e as chamadas “microfundações” da macroeconomia (Hoover).

Poupo o leitor do aprofundamento nos escaninhos e labirintos teoréticos de tais posicionamentos para lhe dizer que tal visão, ao cabo, serve apenas para dissolver a personalidade do indivíduo, reduzir a sociedade a um mero conjunto atomizado de agentes econômicos, rejeitar qualquer tipo de recuperação de uma racionalidade teórica e prudencial que permita uma lógica da economia centrada no homem, aumentar os condicionamentos economicistas e aprofundar a tecnificação da economia.

É preciso que a economia, uma vez considerada como ciência prática e teórica, volte a colocar as coisas em seu lugar. Na primeira perspectiva, ela ocupa-se da eleição dos fins que estejam em conformidade com a plena realização do homem como pessoa humana. Na segunda, ela define o dado econômico e a técnica mais apta a atender à perspectiva anterior. Dessa forma, a economia marca o rumo da liberdade que se transforma em capacidade de exercício de uma ação conducente ao bem pessoal e comum do indivíduo.

Quanto ao direito, a tarefa também não é muito fácil, embora de envergadura inferior àquela a ser trilhada pela economia. Ao intérprete do direito, sempre a partir da lei e sem se deixar seduzir pelo real desviante, compete, nos tempos de incerteza em que vivemos, observar direta e atentamente a realidade, o que implica no conhecimento das coisas e dos homens e da prudência inata daí decorrente, abrir-se de forma principiológica à justiça, pela formulação (e não pela criação a partir do nada) de normas que são a estilização verbal do direito e, por fim, promover uma decisão casuística da jurisprudência, ao se realizar o justo concreto, não por mera subsunção lógica à lei, mas por meio da busca dialética entre os bens jurídicos e sociais postos em xeque, dando a cada um o seu por meio da síntese prudencial.

À rigidez do pensamento sistemático e logicista, compete ao intérprete do direito agir com uma flexibilidade equitativa na apreciação das razões tópicas postas em jogo no caso concreto. Dessa maneira, o direito, a partir da lei e da contribuição do dado econômico, é capaz de, no cotejo do bem econômico com outros bens sociais em jogo no caso concreto, não capitular face ao real desviante e exercitar uma profunda e humana sensibilidade criadora prática.

Os atuais e preponderantes enfoques sistemáticos da economia e do direito, vinculados, respectivamente, à maximização crematística da riqueza e ao vazio do dogmatismo juslegiferante, são incapazes de apreciar cabalmente a complexidade social a partir de uma leitura da realidade das coisas de cada um desses campos do saber, porque a complexidade porta infinitos pontos de liberdade e de possibilidade, a implicar tanto continuidade como indeterminação.

Em outras palavras, os pontos de equilíbrio nunca ocupam o mesmo espaço duas vezes num sistema social e, por isso, economia e direito não devem pensar somente em termos de maximização (economia) e de construção sistematizante (direito) de pautas sociais. Devem pensar em termos de potencialidade criativa, a partir da superação das tensões aqui citadas pelos caminhos da razão prática, em prol do restabelecimento de formas internas de solidariedade e confiança recíproca, e à vista do bem comum social historicamente situado numa era, literalmente, virulenta.

André Gonçalves Fernandes, Post-Ph.D., é juiz de Direito, professor-coordenador de Metodologia do Direito do CEU Law School, pesquisador da Unicamp e professor-visitante da Universidade de Navarra.

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