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Educação, ensino e centralização
| Foto: Wokandapix/Pixabay

Depois de mais de 33 anos de vida militar, alguns deles passados na sala de aula como professor de escolas militares, resolvi me dedicar ao estudo da educação, impulsionado pelas constantes ingerências do Ministério da Educação no ensino nacional, por minha curta passagem por aquele órgão e pelo interesse em estudar Filosofia, principalmente Filosofia da Educação. E, de início, descobri que há uma profunda diferença entre educação e ensino. Nosso Ministério da Educação não estava – e não está ainda hoje – preocupado com a educação, mas tão somente com o ensino. E qual a diferença básica? Educar é mudar o comportamento, enquanto ensinar é transmitir uma habilidade ao indivíduo.

A educação, assim entendida, é uma obra de toda a vida porque envolve a construção de todo o ser da pessoa que é educada. Podemos ser educados até o fim de nossa existência terrena e, uma vez educados, podemos melhorar como seres humanos. Mas isso exige aprender qual era e é a natureza deste ser humano, qual o seu fim último, e qual a história de como se educou antes de nós.

A primeira coisa que fiz foi entender como funciona o ser humano, uma vez que teria de mudar seu comportamento caso quisesse ensinar alguém. As ciências atuais, no entanto, classificam o ser humano cada qual como um objeto distinto. As ciências biológicas pensam em uma máquina biológica; as ciências sociais o imaginam como um ser social; as psicológicas, como ser emocional; as ciências religiosas, como um ser imortal; as ciências econômicas, como um ser trabalhador, e assim sucessivamente. Mas, afinal, o que é o ser humano? Qual o seu fim?

Ao caminharmos com os gregos antigos, observamos que, para eles, este ser era especial em relação a todo o restante da natureza. Tinha uma psicologia diferente, que podia ser moldada por meio de um processo chamado “educação”. Uma palavra em especial me chamou a atenção: “aretê”, a qual poderíamos traduzir por “virtude”. Não poderia haver educação sem “aretê”. E este conjunto de virtudes que levava este nome passava pela coragem, pela eloquência e pelo discernimento, que faziam a pessoa ser conduzida ao seu mais alto grau de potencialidade intelectual. Este estado intelectual era chamado de contemplação. Ficava claro para os gregos que o ser humano era corpo (“soma”) e alma (“psiquê”). O corpo estava relacionado ao material, e a alma era a parte mais importante porque era ali que se encontrava o intelecto capaz de contemplar. Esta alma era considerada imortal, justamente por não ser material; na morte, ela não se corromperia. O fim do ser humano era a contemplação natural, por meio do desenvolvimento máximo da inteligência.

Continuando a busca pelo entendimento da antropologia humana, verificamos que no Cristianismo a interpretação do que é o ser humano ganhou algo a mais. Além de entender que existia corpo e alma, São Paulo (1Ts 5,23) acrescentou o espírito (“pneuma”). Neste caso, a educação que os cristãos desenvolveram por determinação de Cristo (Mt 28,20) incluiu este fator no processo educativo. Com o espírito, era possível ter a infusão, na alma, de virtudes que iam além da “aretê”: as virtudes infusas apresentadas tão bem por São Tomás de Aquino. Este fator influenciou sociologicamente a história do Ocidente e de todo o mundo, levando a civilização cristã à hegemonia mundial pelo menos até a Idade Média. O fim do ser humano era unir-se a Deus por meio de Jesus Cristo; para isto, precisaria desenvolver uma vida espiritual. Mas foi nesta época, e por diversas razões, que esta educação foi sendo atacada e o entendimento de que o ser humano seria muito mais que corpo e alma foi decrescendo. Em resposta à Reforma Protestante, a Igreja Católica tentou retomar, por meio dos jesuítas, a mesma educação cristã do primeiro milênio, mas não conseguiu. Atingiu o que podemos chamar de Escola Clássica, muito semelhante à dos gregos, mas sem a consideração do espírito.

A derrocada foi retardada, mas não interrompida. O Barão de Montesquieu, algum tempo depois, definiu que, para haver uma nação sólida e democrática, a virtude que deveria ser passada de geração em geração seria aquela chamada “cívica”. O fim aqui era formar um cidadão de alto nível intelectual e que tivesse um grande apreço pelo bem comum. E foi com estas ideias que se formaram e desenvolveram os Estados Unidos da América, o que os levou a ser a primeira potência mundial. Naquele país, a escola clássica foi adotada juntamente com as ideias de virtude cívica, levando a concluir que este sucesso global deve ser atribuído a este modelo educacional adotado. Se uma nação for educada convenientemente, irá progredir.

Mesmo nos Estados Unidos, entretanto, a educação foi apagando a ideia de alma, ficando apenas com o corpo. Isto ocorreu com o surgimento de um movimento econômico iniciado na Revolução Industrial e que veio paulatinamente alterando a ordem social, tornando-a secundarizada. A educação começou a preocupar-se apenas com o lado material e econômico, e é isto o que chamamos ensino. Esquecendo-se da alma e do espírito, o que resta é o corpo material. Desta forma, para o ensino não mais é necessário receber nem a virtude cívica, nem a virtude infusa e nem a “aretê”. Para esta mudança educacional foi necessária uma nova formulação cosmológica que se adaptasse a esta nova estrutura sociológica.

Daí o equívoco em confundir educação e ensino. Acreditava que o ser humano era apenas corpo e que, portanto, não precisa desenvolver a inteligência que está na alma, bastando ensinar o corpo – ou seja, era suficiente ensinar aos meus filhos uma profissão e pronto. Mas os educadores norte-americanos também viram isto, e admitiram que a educação nacional estava sendo tratada como uma linha de montagem, onde se colocava um “input” e se esperava, no fim do processo de ensino, apenas um “output”. O fim era colocar a criança o mais cedo possível na produção econômica e retirá-la do convívio familiar o quanto antes. O fim último deste ser humano atual é ser um agente econômico.

Como conclusão simples, rápida e óbvia, o ensino atual e centralizado, que muitos ainda pensam tratar-se de educação, considera os estudantes como seres humanos inferiores que têm uma finalidade muito diferente daquela dos gregos, dos cristãos ou da escola clássica. Isto exige uma pergunta: esta centralização do ensino e da educação adotada no mundo todo seria benéfica para o ser humano?

Acredito ser um problema no sistema de ensino global esta maneira de formar de maneira centralizada o chamado “cidadão global e sem fronteiras”. Existem alguns paradigmas na área educacional que não deveriam ser considerados como tais porque nunca foram comprovados, ou porque são contra a natureza humana.

Muitos, por exemplo, acreditam que a centralização é boa para todos, fazendo com que os estudantes recebam sempre um conjunto de ensinamentos único que fará deles iguais entre si. Entretanto, quem pensa assim não faz a menor ideia do que seja uma sala de aula no Brasil. Levar um conteúdo único para jovens do Nordeste, Sul ou Norte é simplesmente impossível por deficiências de corpo docente e de recursos físicos. Ao colocar mais de um aluno em uma sala de aula, já se cria um problema na velocidade de apreensão de cada um; ao se colocar uma turma toda reunida, as diferenças apenas aumentam. Imagine o leitor o que ocorre no nível estadual ou internacional. Ao se tentar realizar tal tarefa, a cultura popular e local, que é algo fundamental na educação, estará sendo abafada em prol de uma cultura mundial.

Outro desses paradigmas é a crença de que a igualdade, tão propalada e buscada para o ser humano, pode ser um objetivo educacional. Ora, uma vez que todos nós somos indivíduos, por isso somos diferentes, este paradigma é obviamente contrário à natureza humana. Da mesma maneira que o currículo único é absurdo em termos de humanidade, a busca da igualdade também o é. Comentei, em audiência pública na Câmara dos Deputados, que o Brasil não tem um prêmio Nobel ainda e valores individuais são “roubados” pelo exterior. Também acontece algo semelhante nos países desenvolvidos: todos saem à caça de talentos e, ao localizá-los, fazem propostas irrecusáveis. Ainda sobre igualdade, os verdadeiros educadores sabem muito bem que, ao se definir parâmetros, o nível é achatado naturalmente. Ao se estabelecer referências, comete-se injustiças com os estudantes mais velozes e com os mais lentos, fazendo com que se busque atender os mais necessitados, reduzindo os referenciais, e desprestigiando os mais rápidos, que serão abandonados em um sistema que lhes é insatisfatório, tornado enfadonho.

Uma terceira ideia paradigmática é a de que investir em educação é derramar grandes somas de recursos financeiros para melhorar o sistema, algo que nunca foi comprovado no mundo. Esta ideia veio dos economistas que introduziram o conceito de “capital humano” no meio educacional. Ao realizar a “economização da educação”, estes economistas educacionais iniciaram um processo de estudo para transformar os sistemas educacionais do mundo em linhas de montagem. Ao realizar esta transformação, a linha de montagem sempre obedece a um parâmetro que garante a eficiência do processo, acarretando maior lucro. A área de ensino está tomada por pensamentos econômicos, e as políticas educacionais visam tão somente este desenvolvimento objetivo que as escolas devem ter.

Este viés econômico na educação leva a outro paradigma, que é o da avaliação. Em minha passagem pela Secretaria-Executiva do Ministério da Educação, como diretor de Programas, conheci muitas pessoas que acreditavam verdadeiramente que sem uma avaliação dos alunos não se poderia verificar o rendimento do ensino. Pude verificar in loco que temos poucos educadores no trabalho administrativo do ministério e, com isso, praticamente ninguém sabe o que significa “avaliação do ensino”. Também se observa que a economia influenciou o entendimento do assunto. O serviço público, ao colocar dinheiro em um setor, precisa comprovar que ele trouxe retorno público ou que o recurso público foi bem gasto, sob pena de haver reprovação de contas. Foi assim que se criou a ideia de medir a eficiência do ensino aplicando provas e testes, buscando comparação entre escolas, municípios, estados e até países, justificando o emprego de dinheiro público.

Se, como vimos anteriormente, há uma diferença imensa entre educação e ensino, fica muito latente que um currículo único, a igualdade, o investimento e a avaliação formam um conjunto indissociável, impossível de desmembrar, e que está totalmente ligado apenas ao ensino. Os economistas querem um trabalhador mais eficiente, um robô que trabalhe sem errar e produza sempre mais; para isso, cria-se um currículo mínimo e único para todos os trabalhadores, igualando-os e transformando-os em “capital”. Para garantir isto, investe-se recursos financeiros e prioriza-se avaliações, ensinando os alunos a serem cidadãos aptos para exercerem as funções econômicas que estes economistas planejaram.

Verificamos, nos Estados Unidos, que investir no ensino não trouxe resultados esperados, e lá se comprovou que a avaliação não produziu melhoria. O Japão mostrou que, ao se centralizar, é retirada toda a criatividade. A Finlândia, sem ter um currículo único, é líder mundial na educação. Poderia citar outros exemplos nestas diversas áreas.

O que está acontecendo, então? Os especialistas e gestores não querem ou não podem observar estes dados claros? Ou já estão afetados por este sistema deficiente de educação que não consegue ter capacidade de raciocínio tão necessário ao ser humano? Talvez não entendam mais que o ser humano tem uma dignidade única, é um indivíduo capaz de se autogovernar e de buscar o desenvolvimento máximo de seu potencial intelectual. O grande educador brasileiro Anísio Teixeira, em A Educação e a Crise Brasileira, fez comentários sobre a centralização no Brasil:

O desenvolvimento cultural da humanidade é uma lenta marcha da unitariedade para a diversidade, processo que somente nos últimos 2 mil anos, isto é, em nossa era, conquista uma relativa aceleração graças ao desenvolvimento da inteligência especulativa do homem e, em consequência, do seu pensamento literário e científico. Até então as culturas não tinham como não ser altamente inconscientes e, por isso mesmo, muito mais uniformes e estáticas. A partir primeiro dos judeus, e depois dos gregos, é que podemos falar de culturas conscientes e de ímpeto dinâmico de diversificação e progresso que essa conscientização das culturas pode promover e promove, sem perda de sua unidade orgânica.”

A educação, por este aspecto, é uma unidade para se formar “uma cultura em processo de diversificação ou florescimento”. Não se pode esquecer que segregação, isolamento, centralização, homogeneidade e imobilidade fazem com que uma cultura se atrofie e morra. Isto leva a “uma certa petrificação” sem qualquer enriquecimento cultural. E continua Anísio Teixeira:

O erro provém, sobretudo, da ideia de que uniformidade, unitariedade, linearidade é um bem, quando, em cultura, é indicação de primitivismo, de selvagerismo, de barbarismo, de não desenvolvimento, ou de ausência de crescimento. Toda cultura viva tende a se diversificar, a variar, e o entrechoque das variedades é que lhe permite o crescimento e a saúde, inclusive com a revitalização das formas anteriores, em perigo de extinção, e que, pelo desenvolvimento, se integram no novo estágio, renovadas e reorganizadas.”

Claudio Titericz, coronel da reserva do Exército Brasileiro, é bacharel, mestre e doutor em Ciências Militares, bacharel em Teologia, estudante de Filosofia da Educação, ex-diretor de Programas da Secretaria-Executiva do Ministério da Educação e um dos fundadores do Instituto de Biopolítica Zenith.

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