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Educar não é vender: por uma escola ética, humana e inclusiva

Imagem ilustrativa. (Foto: Albari Rosa/Arquivo/Gazeta do Povo)

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Enquanto o Brasil assiste à consolidação de escolas como produtos de mercado – padronizadas, escaláveis, centradas em métricas e promessas publicitárias – um debate essencial é deixado de lado: qual é o verdadeiro sentido da educação? A resposta não está nas planilhas de investidores nem na estética dos folders. Está nos olhos de cada criança que entra pela porta de uma escola esperando mais do que conteúdo: esperando ser vista, escutada, respeitada. Esse artigo propõe uma reflexão ética sobre o papel das escolas e dos educadores diante da diversidade humana – especialmente de crianças com altas habilidades ou superdotação, cujas necessidades são, muitas vezes, ignoradas em nome de uma ideia equivocada de equidade.

No Brasil, cresce um movimento preocupante: muitas escolas têm operado mais sob a lógica de negócio do que como lugares de formação humana. Em vez de espaços de desenvolvimento integral dos alunos, vemos instituições replicando modelos prontos, importados e padronizados, descolados da realidade brasileira, conduzidas não por educadores, mas por investidores – bem-intencionados, é verdade, mas tecnicamente despreparados. São escolas que vendem promessas, mas se esquecem da essência daquilo que deveriam oferecer: educação de verdade.

Assiste-se, por um lado, à expansão de grandes grupos educacionais que absorvem escolas menores, padronizando processos e limitando a autonomia pedagógica. Multiplicam-se também as redes de franquias educacionais. O modelo de negócios, idêntico ao das franquias de alimentação nos shoppings, onde há um manual de operação, treinamentos uniformes, cobrança de royalties e pouca margem para autonomia, inovação ou personalização, é o que rege cada professor do seu filho. Como se a criança fosse um produto alimentício. E onde fica, nesse processo, a criança que passa oito horas por dia na escola? Que espaço há para suas singularidades, ritmos e necessidades?

De outro lado, resistem as escolas menores, muitas vezes com décadas de história e um clima acolhedor que lembra a sala da casa da avó – com colo, bolo quente e carinho. No entanto, mesmo bem-intencionadas, muitas dessas instituições seguem modelos pedagógicos ultrapassados, pouco conectados com as exigências do mundo contemporâneo. É urgente reabrir a discussão: “Que tipo de educação queremos para nossas crianças e adolescentes? Uma que prepara para o mundo com profundidade, sensibilidade e senso crítico? Ou uma que apenas repete fórmulas – sejam elas de mercado ou de tradição?”.

Em um tempo em que o marketing escolar fala mais alto que a escuta pedagógica, é urgente recuperar a missão formativa da escola. Educar não é vender pacotes de conteúdo: é cultivar pessoas. E nenhuma sociedade que se pretenda justa e democrática pode se dar ao luxo de negligenciar seus talentos

Educar é coisa séria. E aluno precisa ser feliz nela – não como consequência, mas como princípio. Felicidade aqui não é ausência de conflito ou excesso de liberdade: é ser reconhecido, desafiado, compreendido. Uma escola boa é aquela que forma pessoas – e não apenas aprova alunos.

A maioria dos pais brasileiros ainda confia cegamente nos discursos escolares. É compreensível: viemos de gerações que aprenderam a não questionar.  Um posicionamento quase intacto que não aprendeu a fazer perguntas difíceis. Índices como o Civic Engagement Index (Índice de Engajamento Cívico) avaliam o grau de participação ativa dos cidadãos em decisões públicas. O Brasil aparece com participação abaixo da média, o que também pode indicar dificuldade cultural em debater publicamente. O Brasil é o país com baixa percepção de seu poder cívico – apesar dos dados mostrarem instituições democráticas sólidas e condições razoáveis para o empoderamento cidadão. Há também algumas pesquisas de universidades e institutos de inovação ranqueiam países quanto a habilidades de resolução de problemas complexos, colaboração e argumentação, expressão criativa. Geralmente, países nórdicos, Canadá e Holanda aparecem bem. O Brasil aparece em níveis médios ou baixos.

Esta postura, clara e infelizmente, repassa aos filhos. O sistema educacional brasileiro historicamente valoriza a autoridade do professor e desencoraja a dúvida. Muitos alunos relatam receio de perguntar ou debater nas aulas, por medo de parecerem “desrespeitosos”. No Programa Internacional de Avaliação de Alunos (PISA) que avalia competências de jovens de 15 anos em leitura, matemática e ciências e analisa pensamento crítico e resolução de problemas, o Brasil costuma ocupar posições baixas no ranking geral. Os relatórios apontam que a educação brasileira ainda foca na memorização, em vez de incentivar o questionamento ou a argumentação.

Precisamos entender que uma boa escola não é a que tem melhor marketing, mas a que respeita a infância e a adolescência especialmente sua individualidade e se atualiza em suas práticas não apenas pedagógicas, mas psicossociais e legislatórias. A Constituição Federal (Art. 208, V), a LDB (Lei 9.394/96), o Decreto 7.611/2011 e a Política Nacional de Educação Especial garantem o direito à aceleração escolar, a adaptações curriculares e ao atendimento educacional especializado para superdotados.

Portanto, quando uma escola nega adaptações recomendadas em um laudo psicológico – como flexibilização curricular ou aceleração – ela está, sim, descumprindo a lei. “Se aceitamos um laudo médico que orienta afastamento em caso de Covid, por que não aceitamos um laudo psicológico que indica aceleração para superdotação?”. Muitos gestores ainda entendem aceleração como algo simplório, mecânico – como um "pulo de série". Mas existem múltiplos tipos de aceleração: por disciplina, por compactação curricular, por enriquecimento extracurricular. O foco é sempre o mesmo: ajustar o ritmo da escola ao ritmo de aprendizagem do aluno, e não o contrário.

A escola – e também a Instituição de Ensino Superior, onde direitos à aceleração e adaptações permanecem – reconhece que Plano Educacional Individualizado (PEI), quando bem elaborado, protege o aluno – e também a instituição. Contribui para reduzir a evasão, aumentar o engajamento, fomentar inovação e promover trajetórias acadêmicas mais produtivas e saudáveis. E mostra que a escola e a universidade estão alinhadas com os princípios da educação inclusiva.

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E tocando na questão, ainda são raras as universidades que conhecem ou aplicam corretamente o PEI. Mas ele é previsto pela legislação, assim como a possibilidade de aceleração e a oferta de atividades desafiadoras.

A inclusão só é completa quando contempla todas as formas de diversidade — e isso inclui a diversidade cognitiva. Recentemente, a Justiça reconheceu que não oferecer intérprete de Libras a uma funcionária surda foi violação de seus direitos. No campo da superdotação, o modelo DMGT (Differentiated Model of Giftedness and Talent), desenvolvido pelo renomado psicólogo e pesquisador Françoys Gagné, surge como uma das principais referências internacionais. Ele nos convida a diferenciar aptidões naturais de talentos desenvolvidos, abrindo caminhos concretos para apoiar o crescimento de crianças superdotadas.

Tenho a honra de estar traduzindo para o português a obra fundamental de Gagné – Differentiated Model of Giftedness and Talent – com autorização direta do autor e da editora Routledge. Trata-se de um marco para a educação brasileira, e um presente para famílias, educadores e profissionais que atuam com altas habilidades/superdotação. Traduzir um modelo tão complexo quanto o DMGT exige mais do que domínio linguístico. É necessário compreender o contexto educacional e cultural do Brasil. Termos como aptidão, competência, habilidade e talento carregam significados específicos que, quando mal interpretados, podem comprometer legislações, diretrizes escolares e políticas públicas.

Enquanto identificar um talento pode remeter à imagem estereotipada de um “gênio nato”, mapear competências é reconhecer aptidões que ainda podem ser desenvolvidas – e habilidades são os sinais de que esse desenvolvimento já está em curso. Compreender essas distinções é essencial para garantir que o aluno superdotado não seja negligenciado por falta de estratégias adequadas ou por equívocos conceituais.

Mais do que uma tradução, este trabalho busca promover clareza e coerência na forma como a superdotação é entendida e acolhida no Brasil. Para que nossas crianças não sejam vítimas do desconhecimento – e para que seus potenciais encontrem espaço para florescer. Pais de crianças neurodivergentes – e aqui incluo os superdotados – vivem muitos embates com escolas. São chamados de exigentes, de exagerados, de “pais difíceis”. Mas são apenas adultos tentando garantir o direito ao aprendizado pleno de seus filhos.

Como mãe de crianças superdotadas e estudiosa da área, posso dizer: o acolhimento escolar é decisivo para o desenvolvimento emocional e acadêmico dessas crianças. E isso é direito do superdotado. E não, superdotação não é um problema a ser resolvido. Tampouco é sinônimo de elitismo ou de crianças “fáceis de lidar”. Trata-se de diversidade cognitiva e funcionamento cerebral diverso – e, como tal, exige atenção, formação e práticas inclusivas específicas.

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Superdotação vai muito além do QI. Ela pode se manifestar em múltiplas formas: na arte, no esporte, no pensamento social, na liderança, na sensibilidade emocional. Mas o mito do "gênio do laboratório" ainda prevalece. E é por isso que tantos superdotados passam anos na escola sem serem reconhecidos – ou pior: sendo mal compreendidos, punidos por seu ritmo diferente ou diagnosticados erroneamente com transtornos que não têm.

Quantos potenciais brilhantes não foram desperdiçados por falta de escuta? Quantas crianças não foram podadas por escolas que se recusam a enxergar além da média? Você, pai e/ou mão, quando leva um laudo de superdotação na escola, vá com firmeza. Não por arrogância, mas por convicção. O laudo psicológico tem força legal. E seu filho tem direito de ser visto como ele é.

Como faria Beethoven: entre com o pé na porta. Porque toda criança quer ser vista, reconhecida e valorizada. E a criança superdotada também. Mesmo quando é inquieta. Mesmo quando desafia. Mesmo quando silencia. Que nosso olhar seja mais que julgamento. Que seja afeto. Felizmente, nem tudo é resistência. Também há reencontros, escuta, pontes. Quando cada lado se reconhece como humano, tudo muda. Porque todos erramos. Mas todos também podemos acertar – se houver diálogo.

A escola que não escuta, que se fecha, que ignora a legislação ou trata educação como produto, deixa de cumprir sua função social. E, pior, fere o direito à aprendizagem. Educar não é vender pacotes prontos. É desenhar caminhos únicos. É ser parceiro das famílias. É formar seres humanos. E é por isso que repetimos: escola não é negócio. Escola é projeto de vida. E merece ser tratada como tal.

Mas de que adianta falar em excelência educacional se não discutimos o que é, afinal, uma educação ética? Aqui entra a filosofia, com sua contribuição milenar: educar é formar o caráter, é cultivar virtudes, é praticar justiça. E, como nos ensinou Aristóteles, justiça é tratar os desiguais de forma desigual, oferecendo a cada um o que precisa para florescer. Nessa perspectiva, reconhecer as necessidades de um aluno superdotado não é privilégio: é responsabilidade.

O desafio moral da exclusão sutil

A sociedade atual fala muito em equidade, mas silencia quando se trata de alunos com altas habilidades ou superdotação. Ao contrário da crença comum de que esses alunos "não precisam de ajuda", o que temos é uma negligência estruturada que os impede de alcançar sua plenitude — tanto acadêmica quanto emocional. O despreparo das escolas e o preconceito silencioso revelam um dilema ético profundo: o que é justo quando falamos em equidade? A ética das virtudes de Aristóteles nos lembra que justiça é dar a cada um aquilo que lhe é devido.

Na tradição filosófica ocidental, a moral é o conjunto de normas que orienta nossa conduta. Mas a verdadeira virtude, segundo Aristóteles, não nasce apenas da obediência a normas externas, e sim do cultivo de hábitos internos que moldam o caráter. Assim, a questão não é apenas “seguir regras” educacionais, mas pensar: estamos oferecendo às crianças superdotadas uma oportunidade de florescer? Estamos promovendo sua eudaimonia – o florescimento pleno que une razão, virtude e bem-estar?

Conhecer-se para conhecer o outro

O lema socrático “conhece-te a ti mesmo” deve também ecoar nas salas de aula. Professores que compreendem sua missão com autoconhecimento ético reconhecem o desafio de lidar com mentes brilhantes que aprendem rápido, sentem intensamente e questionam desde cedo. O autoconhecimento é o primeiro passo para a empatia, e a empatia é essencial para a prática da justiça na educação.

Quantas vezes ouvimos: “Ah, ele é superdotado, não precisa de ajuda”? Esse pensamento ignora os desafios emocionais e sociais enfrentados por esses alunos. A ética nos convida a agir com responsabilidade diante da vulnerabilidade invisível — aquela que não grita, mas sofre em silêncio. Negar apoio a uma criança superdotada é não apenas uma falha educacional, mas uma transgressão ética.

A virtude da prudência: o equilíbrio entre o excesso e a omissão

Aristóteles defendia que a virtude está no meio termo — nem excesso, nem ausência. No caso da superdotação, o excesso é a idealização do aluno como “gênio inalcançável”, e a omissão é a negação de suas necessidades específicas. A virtude da prudência nos orienta a enxergar com clareza, pesar as situações e agir com justiça e sensibilidade.

Justiça e equidade: a ética do atendimento educacional especializado

A LDB (Lei 9.394/96), o Decreto 7.611/2011 e a Política Nacional de Educação Especial (2008) estabelecem claramente o direito de atendimento educacional especializado para alunos superdotados. No entanto, o que se vê é a negligência desses dispositivos por falta de formação, recursos ou simplesmente vontade política. Ignorar esses direitos é ser conivente com a injustiça institucionalizada — e, portanto, agir de forma imoral à luz da ética clássica.

A escola como espaço de cultivo da virtude

A escola, como espaço ético por excelência, não pode ser apenas um repositório de conteúdos. Ela deve ser um espaço de formação do caráter – inclusive do caráter dos educadores. A prática da virtude começa pelo reconhecimento de que nem todos aprendem da mesma forma, nem no mesmo tempo, e que adaptar-se a isso é um imperativo moral.

A ética da esperança: virtude teologal e potência transformadora

Se a virtude da esperança é um dom que nos impulsiona a acreditar no que ainda não é visível, então acreditar na transformação da educação é, em si, um ato de resistência ética. Ao enxergar o potencial de uma criança superdotada e lutar por condições justas para que ela se desenvolva, o educador age com esperança — e transforma essa virtude em prática.

Neurociência e ética: o saber a serviço do bem

Avanços na neurociência nos mostram como o cérebro de crianças com altas habilidades funciona de maneira singular — com hiperconectividade, intensidade emocional e sensibilidade ampliada. Não se trata apenas de desempenho, mas de estrutura. Ignorar esses dados por conveniência administrativa é um ato amoral. Integrar ciência e ética é reconhecer que a inteligência também exige cuidado.

Verdadeira eudaimonia nasce do reconhecimento

Educar para a eudaimonia é mais do que formar bons alunos: é formar pessoas conscientes, capazes de contribuir com o mundo a partir de seus talentos. Crianças superdotadas precisam de uma educação que reconheça, respeite e cultive sua singularidade. A ética nos pede isso. E a justiça também.

Mais do que uma crítica ao modelo mercantilizado de ensino, este texto é um apelo à coragem ética. Coragem para ver cada aluno como único, para recusar o apagamento da diferença, para escolher a virtude em vez do lucro. Em um tempo em que o marketing escolar fala mais alto que a escuta pedagógica, é urgente recuperar a missão formativa da escola. Educar não é vender pacotes de conteúdo: é cultivar pessoas. E nenhuma sociedade que se pretenda justa e democrática pode se dar ao luxo de negligenciar seus talentos — sobretudo os mais sensíveis, intensos e complexos. Conhecer o outro exige, antes, conhecer a si mesmo. E talvez, como dizia o oráculo de Delfos e repetia Sócrates, a educação comece por aí: por reconhecer que formar alguém é, também, um caminho de autoconhecimento e transformação mútua.

Lílian Schreiner-Módolo é graduanda de Psicologia, doutora e mestre em Administração, especialista em Docência do Ensino Superior, professora de graduação, MBA e mestrado, e empresária. Autora do livro “Glossário da Superdotação” (Editora Arcádia, 2024), “Teddy Roosevelt para Crianças” (Editora Arcádia, 2022). Foi ResearcherFellow na Universidade de Graz, Áustria e é vice-presidente da Associação Superdotação no Mapa.

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