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"É o efeito Obama", disparou o homem entrado nos 40 anos, ao ouvir minha observação sobre preços baixos de determinados produtos em um supermercado careiro. A frase soou sem nexo. Depois a entendi. Queria dizer que, depois da eleição de Obama a presidente de um país que há 50 anos não deixava negros partilharem do mesmo espaço público em ônibus com brancos, "tudo poderia acontecer".

O interlocutor vivamente animado era um negro atlético, sorriso amplo, dentes alvíssimos.

O efeito Obama é fato. Gera surpresas como o Papai Noel negro encarnado por um dos seres humanos mais simpáticos e educados que conheço, Dionísio Filho, comentarista esportivo. Dionísio é apenas um dos exemplos de uma certa corrida em busca do tempo perdido, promovida por agências de publicidade, políticos, o pessoal de marketing e medidas diversas tomadas por governos e entidades públicas. Todos estão atrás de negros para filmes, novelas, lançamento de imóveis etc. Isso sem falar das negras esquálidas, ares de princesas etíopes, deslizando em passarelas da moda.

Os negros deixaram de frequentar só páginas policiais, as do show business e as seções de esportes dos jornais. Estão em todas, em alta tardia. Frutos de certa hipocrisia oportunista ou reconhecimento do tempo perdido? Pena que o Brasil só agora esteja descobrindo seus filhos negros, até dias atrás quase sempre apontados como cidadãos de segunda classe.

O racismo explícito e o camuflado sempre existiram e me perturbaram. Na mocidade, início dos anos 60, pedi a uma agência de domésticas de Curitiba que me mandasse uma senhora de bons costumes e ficha limpa, prendada, para cuidar do meu apartamento. A gerente refletindo as restrições comuns de sua clientela, sem a mínima compostura, perguntou de saída: "O senhor não se importa se for uma mulher ‘de cor’?". Disse-lhe não entender a pergunta. E veio-me a lapeana Tereza Prestes, neta de escravos, que acabou trabalhando por 21 anos comigo. Virou mãe substituta, imprescindível, partilhava das alegrias e das dores da casa. Só saiu quando o coração falhou e foi levada pelo anjo da morte.

O racismo no Brasil tem várias faces: no Rio Grande do Sul, onde nasci, de família portuguesa pelo lado materno, e alemã, por via paterna, percebia-se racismo contra os italianos e seus descendentes, tratados pejorativamente como "esses gringos". Alemães eram "porões de navio", "alemães batata".

Mas quem sofreu – e sofre – todo tipo de preconceito étnico foram os negros, a parte mais pobre e marginalizada de um país dito cristão, que começou por marginalizá-los nos próprios estabelecimentos religiosos. Se nos Estados Unidos os ricos batistas, episcopais, presbiterianos e metodistas do sul eram escravistas empedernidos, aqui foram as grandes ordens católicas que sacramentaram, com a maioria de seus bispos, a hedionda instituição do escravagismo. Pois não é que os beneditinos (donos de instituições respeitadíssimas, como os mosteiros de São Bento no Rio, São Paulo, Olinda e Salvador), os jesuítas (defensores dos índios) e os franciscanos (pax et bonum) eram proprietários de milhares de escravos?

Cuidavam dos bens celestes e inventariavam seres humanos como peças do patrimônio material, sem nenhum pudor.

A propósito: a profunda imersão nesse mundo fascinante e desumano em que viviam os negros, faço-a na leitura de Domingos Sodré, um sacerdote Africano. É exemplar trabalho acadêmico, documentado como só os scholars sabem fazer. Fotografia em preto e branco, hiper-real da incessante perseguição que a sociedade brasileira votou às manifestações espirituais afro-brasileiras. Sodré, cativo alforriado, e também dono de escravos, compõe o ponto de partida para mergulho nessa realidade que explica tantos comportamentos de nossa história. É trabalho do professor da Universidade Federal da Bahia, João José Reis. Expõe com nitidez a quanto chegavam e de que eram capazes governos e aparelhos policiais a serviço da escravatura. Como a devolução à África, de onde haviam sido tirados à força, de todos os negros incriminados como "feiticeiros".

O sacerdote africano do candomblé Domingos Sodré foi boa personagem, com suas práticas de adivinhação e curas. Tal sociedade negra sabia defender-se com sabedoria, criando suas juntas de alforria. Elas recolhiam dinheiro dos escravos, sobretudo dos escravos de ganho, para compra de sua liberdade. Fazia-se rodízio para a alforria.

E Riolando Azzi, em História da Igreja (Vozes) ,é outro historiador vital para que se entenda os caminhos dos preconceitos e do racismo que vitimaram principalmente o negro, sob o olhar de manifestações de um sagrado que, mesmo sincrético, não tinha autonomia para se expressar. Sincretismo do candomblé, com sua clientela também branca, perseguido quase como ato criminoso, o que foi até a ditadura Vargas.

Enfim, nem as buscas de experiências de Deus escaparam da repressão violenta. O que pode ajudar a explicar porque o branqueamento passou a ser obsessão para boa parte dos negros brasileiros.

Mas só agora, sob o efeito Obama, o Brasil faz sua proclamação de black is beautiful. Não é tudo, mas já é um certo protocolo de intenções de que medidas duradoras, como a da inclusão social pela educação poderão, de fato, alforriar os afro-brasileiros.

Aroldo Murá G.Haygert é coordenador do projeto Memória Paranaense, do Grupo Educacional Uninter, presidente do Instituto Ciência e Fé, comentarista da Rádio Banda B. É autor do livro Vozes do Paraná.

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