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Em uma de suas reflexões mais decisivas, Santo Alberto Hurtado deixou um julgamento que ressoa com particular força em tempos eleitorais. Não se trata de uma advertência política ou de um comentário sobre os acontecimentos atuais, mas de um guia espiritual para a compreensão da história:
“Mesmo ao atacar o comunismo, devemos fazê-lo com critérios cristãos, não por causa do que prejudica nossos interesses, mas por causa do que contradiz nossos princípios, por causa de sua concepção do homem, da vida e da vida após a morte” (O Chile é um país católico?, ed. 2009, p. 38).
Partindo dessa premissa, a crítica ao comunismo adquire sua verdadeira natureza: ela é, antes de tudo, uma crítica antropológica e espiritual
A declaração funciona como um espelho e um critério. Ela ilumina não de fora, mas de dentro: obriga-nos a situar o julgamento político na ordem mais profunda, a da verdade sobre a humanidade. Sem essa luz, a política degenera em ruído, a análise torna-se superficial e o debate público transforma-se em um espetáculo no qual ninguém compreende plenamente o argumento da peça.
Hurtado nos convida a olhar para as causas, não apenas para as consequências; a discernir as ideologias não por seus efeitos econômicos ou sua retórica social, mas pela imagem de humanidade que elas incorporam. Sob essa premissa, a crítica ao comunismo adquire sua verdadeira natureza: ela é, antes de tudo, uma crítica antropológica e espiritual.
I. A origem do discernimento: sob cada política, uma imagem do homem
A época eleitoral costuma ser reduzida a slogans, programas e promessas. Hurtado muda o foco para outra dimensão: os fundamentos. É aí que a política se torna compreensível, porque cada proposta se baseia em uma ideia particular do que significa ser humano.
A sua reivindicação é clara: o critério cristão não é o interesse próprio, mas a fidelidade aos princípios, aqueles que estão em jogo na “concepção do homem”. Todo projeto político incorpora uma antropologia, explícita ou implícita. É de acordo com essa imagem — a sua profundidade, o seu respeito pela liberdade, a sua abertura à transcendência — que as políticas públicas e as decisões legislativas serão orientadas.
Portanto, para Hurtado, a análise séria não começa com os efeitos, mas com o conceito de pessoa que os inspira.
II. O comunismo segundo Hurtado: um erro que tem origem na antropologia
Santo Alberto denunciou com singular clareza que a falha essencial do comunismo reside não em seus fracassos políticos ou econômicos — embora estes existam —, mas em sua compreensão da natureza humana. É um erro que se origina antes da fábrica e do partido: nasce na alma.
O comunismo trata o homem como material descartável, como uma peça substituível em uma máquina impessoal. Desconsidera a sua dignidade transcendente e a sua vocação eterna. Todo o resto — os abusos históricos, os sistemas falidos, a violência — são consequências dessa falha fundamental.
Uma crítica que ignora essa raiz torna-se uma mera disputa ideológica; com Hurtado, torna-se novamente um discernimento sobre a verdade do ser humano.
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III. Comunismo suave: quando o gesto oculta a raiz
Hoje, versões “benevolentes” do comunismo estão ressurgindo, disfarçadas com a retórica da justiça, da fraternidade e da igualdade. A estética de um comunismo mais brando está circulando: slogans sedutores, analogias apressadas com o cristianismo e afirmações levianas como “Jesus era comunista”.
Hurtado teria rejeitado essas simplificações com uma pergunta decisiva:
“Que ideia de homem está por trás dessa proposta?”
Porque, por trás de sua aparência compassiva, o problema persiste: uma visão limitada do ser humano, a erosão de sua liberdade, a negação de sua transcendência. E, com isso, a justificativa de práticas claramente incompatíveis com a dignidade humana — do aborto a intervenções que desconsideram a natureza corporal — que contradizem o que o santo chama de “nossos princípios”.
A máscara amigável não altera a antropologia que a sustenta.
IV. Marxismo cultural: quando a ideologia muda de forma, não de ferida
A evolução do marxismo em direção às formas culturais confirma a tese de Hurtado: a questão decisiva não é a estratégia política, mas a concepção do homem
A revolução cultural — de Gramsci à Escola de Frankfurt — buscou precisamente isso: transformar a compreensão que uma sociedade tem de si mesma. Não são mais os governos que são derrubados, mas as certezas. A antropologia cristã é substituída por categorias que reduzem a pessoa a forças sociais, econômicas ou psicológicas.
O santo teria reconhecido imediatamente essa ferida: a substituição da pessoa pela variável; da transcendência pela construção; da verdade pela suspeita.
Uma sociedade que renuncia à verdade sobre o homem também renuncia à possibilidade de governar, legislar ou amar adequadamente
Nesse processo, pilares que Hurtado considerava essenciais — família, lei natural, moralidade objetiva, tradição, fé em Deus — são corroídos até perderem seu próprio significado. O que se perde não é um conjunto de regras, mas a compreensão integral do ser humano.
V. As sete reduções: anatomia do encolhimento humano
Na perspectiva de Hurtado, essa deriva pode ser descrita como um processo de reduções sucessivas do homem. Sete, em particular, são paradigmáticas:
- O homem funcional: definido por uma única variável (classe, economia, sexo).
- O homem sem fé: a dimensão espiritual reduzida à ilusão ou à anestesia.
- O homem histórico: a vida humana concebida exclusivamente como conflito.
- O homem social: a pessoa envolta em lógicas de opressão e luta.
- O homem moral: a verdade objetiva substituída por forças impessoais.
- O homem que se envolve em diálogo: a suspeita permanente como método de interpretação.
- O homem de identidade: a liberdade interior subjugada à tribo ou ao grupo.
Em todas elas, a dignidade humana aparece diminuída. O que se perde é a face, a vocação e a grandeza inviolável da pessoa.
VI. O vazio antropológico: a negação da natureza humana
A negação de uma natureza humana estável constitui um dos princípios fundamentais do marxismo em todas as suas vertentes. Onde não há essência, mas apenas pura construção, a pessoa fica vulnerável a ser moldada por forças externas.
Hurtado, por outro lado, lembraria que existe uma imagem de Deus inscrita em cada vida, uma vocação que não depende de circunstâncias históricas e uma alma que não pode ser dissolvida em categorias sociais.
Uma sociedade que renuncia à verdade sobre a humanidade renuncia também à possibilidade de governar, legislar ou amar adequadamente. Nesse ponto, a crítica do santo é tão simples quanto radical: quem diminui a humanidade, a profana.
VII. Uma alternativa luminosa: a dignidade como revolução
A lição histórica de João Paulo II — cuja luta contra o comunismo foi, como aponta Barbara J. Elliott, “metafísica, não política” — confirma a intuição de Hurtado: o erro não é derrotado pela força, mas pela verdade.
Foi a afirmação persistente da dignidade pessoal que desmantelou o edifício ideológico. Hurtado teria reconhecido nisso o método cristão por excelência: não defender privilégios, mas salvaguardar a verdade sobre a humanidade.
VIII. Criticar para curar: o julgamento cristão segundo Hurtado
O santo exigia que toda crítica ao comunismo fosse acompanhada de um exame de consciência. Não se trata de condenar o adversário mantendo-se cúmplice. A denúncia deve vir acompanhada de uma correção interior, e a refutação do erro, da atenção às injustiças concretas que alimentam seu apelo.
Bento XVI insistiria no mesmo ponto: combater o erro sem esquecer o sofrimento real que o torna plausível. Hurtado sempre foi ambas as coisas: uma chama que ilumina e uma mão que ergue.
IX. Renovando nossa perspectiva: retornando ao homem para retornar a Deus
Nos momentos decisivos da história, o Espírito parece soprar com maior força. Hurtado, como João Paulo II em Varsóvia, teria clamado por uma renovação do país desde seus alicerces: a ideia do homem.
Não há transformação política sem conversão antropológica. Não há cultura saudável sem uma perspectiva verdadeira.
Não há discernimento eleitoral sólido sem lembrar quem é o ser humano
Portanto, esta coluna só pode concluir com um pedido simples: que Santo Alberto Hurtado nos ensine a ver o homem como Deus o vê e, assim, guie nosso discernimento em momentos de decisões importantes.
©2025 Revista Suroeste. Publicado com permissão. Original em espanhol: Elecciones y reducciones del comunismo



