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Estamos vivendo um exemplo eloquente de que a so­­ciedade é capaz de corrigir a inapetência dos políticos para refor­­mar qualquer coisa: a proposta da lei dos fi­­chas-limpas

Para os que estão prevendo que o mundo acabará em breve, os sinais são mais evidentes a cada dia: se for um islandês, a erupção do vulcão de nome impronunciável confirmaria a profecia em relação ao anjo da quarta trombeta: "Foi atingida então uma terça parte do sol, da lua e das estrelas (...) e o dia perdeu um terço da claridade, bem como a noite". Se for um australiano, é a profecia da quinta trombeta que mostraria que o fim está próximo: "da fumaça, saíram gafanhotos sobre a terra". Haitianos, chilenos, chineses, mexicanos e americanos, vítimas de terremotos, podem argumentar com a abertura do Sexto Selo: "o céu desapareceu como um pedaço de papiro que se enrola e todos os montes e ilhas foram tirados de seus lugares". Nos céticos, porém, a lembrança de que o fim do mundo já foi prognosticado tantas vezes, provocará no máximo um bocejo. E nos resignados, um dar de ombros, pois, se o mundo for mesmo acabar, nada há a fazer, senão aproveitar o ano e meio restante para fazer tudo aquilo que desejou e não fez até agora.

Mas, já que estou com o Apocalipse bíblico à mão, não custa procurar o lugar em que ele fala do Brasil. Há várias passagens que poderiam se referir a nós, mas a mais próxima é a que diz: "conheço as tuas obras, não és nem frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente". O Brasil é isso, uma sociedade morna, uma sociedade em permanente banho maria. Somos a nação do anticlimax: quando parece que não há remédio e que vamos ter de nos defrontar com um desafio definitivo ao nosso caráter nacional, aparece um atalho inesperado, que permite permanecer na ambiguidade, na tepidez por mais um tempo.

Olhe em volta, paciente leitor, e veja como as coisas entre nós acontecem com uma lentidão exasperante, quando acontecem. Pimenta Neves matou a namorada há dez anos, confessou que matou e o fez por um motivo torpe e está belo e faceiro, impune depois de tanto tempo. Fernando Carli dirigia um automóvel bêbado a uma velocidade espantosa, matou estupidamente dois jovens e, passado um ano, nem foi ouvido ainda no processo judicial. O mensalão já tem mais de seis anos e até agora os principais personagens desfilam com absoluta desenvoltura, embora sofrendo vez por outra um dissabor menor, como uma pessoa que tem um malestar passageiro e depois volta ao normal. O Morro do Bumba desabou há mais de um mês e até agora há gente morando lá em casas precárias, que desabarão na próxima chuva para dar oportunidade às autoridades fluminenses de prometer urgentes providências e de apoio às vítimas.

A sociedade em banho maria já criou até sua linguagem própria: providências serão "imediatamente tomadas" e "urgentes", a desídia, o descaso e a irresponsabilidade serão objeto de "rigorosa investigação", todos os culpados serão "exemplarmente punidos". Qual... Bem-aventurados os que não esperam nada, pois não serão decepcionados (Swift).

E as reformas, hein? Estão prometidas há décadas e muito pouco de concreto aconteceu. A reforma política é um caso de dermatologia social: de vez em quando, as distorções do nosso sistema representativo proporcional, que levam 85% dos parlamentares a serem eleitos com os votos dados a outros candidatos e os partidos a se transformarem em meras ficções, passam a incomodar como um comichão ocasional: é hora de aplicar uma pomadinha qualquer, que alivie a coceira, tal como o anúncio do iminente envio ao Congresso de um projeto reformista, o qual é esquecido tão logo o comichão seja aliviado.

Não há solução? Longe disso e estamos vivendo um exemplo eloquente de que a sociedade é capaz de corrigir a inapetência dos políticos para reformar qualquer coisa: a proposta da lei dos fichas-limpas, endossada por mais de 1,5 milhão de cidadãos, que foi aprovada na Câmara, depois de ter sido cozinhada em fogo brandíssimo dentro do Congresso Nacional, por vários meses. Parece que os pais-da-pátria finalmente começaram a captar os ruídos que vêm do Brasil profundo, aquele que trabalha muito, fala pouco, e é constantemente esquecido, mas que – quando quer – dá sustos monumentais na turma que acredita no imobilismo e na inação.

Agora, é preciso continuar a faxina geral e as eleições estão aí mesmo para essa higiene revitalizadora. Não vamos perder a oportunidade.

Belmiro Valverde Jobim Castor é professor do Doutorado em Administração da PUCPR.

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