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Inflamada polêmica surgida recentemente, que inclui ataques diretos destoantes do espaço democrático e da liberdade de expressão constitucionalmente previstos no país, obriga o Conselho Federal de Medicina (CFM) a esclarecer o posicionamento adotado pela entidade com relação ao tema do aborto.

A decisão, que constitui resposta à solicitação feita pela Comissão Especial do Senado criada para cuidar da reforma do Código Penal Brasileiro, representa o entendimento da instituição, fundado sobre aspectos éticos, bioéticos, epidemiológicos, sociais e jurídicos. Visões distintas devem ser respeitadas, como se espera num Estado Democrático de Direito.

O CFM decidiu, por maioria, expressar ser favorável à ampliação do leque de situações onde há exclusão de ilicitude em caso de interrupção da gestação. É preciso ressaltar novamente que essa decisão não significa ser a entidade favorável ao aborto ou à sua descriminalização.

Ao contrário do que se tem propalado, a aprovação dos pontos propostos pela reforma do Código Penal não descriminalizará o aborto. O que está em discussão são as "causas excludentes de ilicitude". Ou seja, somente em situações previstas em lei a interrupção da gestação não configurará crime. Atos praticados fora desse escopo deverão e continuarão a ser penalizados.

Não obstante esforços de legisladores e jurisconsultos, questões complexas e polêmicas relacionadas ao aborto de embrião humano continuam à espera de atitudes responsivas. Nesse campo, estão inseridos interesses e direitos (coletivos e individuais, morais e religiosos).

No país, tais questões se contextualizam em circunstâncias de mistanásia, haja vista que, por ano, milhares de mulheres, muitas das quais adolescentes – e até mesmo crianças –, morrem ou são vítimas de sequelas permanentes em decorrência de procedimentos de abortos. Afinal, por causa de sua criminalização, tais atos são realizados na clandestinidade, inserindo o problema como prioridade na agenda da saúde pública.

Estudos mostram que, no segmento de até 40 anos de idade, de cada cinco mulheres pelo menos uma já se submeteu a um procedimento desse tipo. A maioria delas possui baixa escolaridade e precária situação socioeconômica, o que agrega um forte ingrediente social ao problema. Ou seja, grande parte daquelas que perdem a vida, ficam sequeladas e sofrem com a indiferença da sociedade são pobres, negras, analfabetas e moradoras de periferias.

Sem dúvida, os estreitos limites excludentes de ilicitude do aborto previstos em nosso anacrônico Código Penal, datado de 1940, são incoerentes com os compromissos humanísticos e humanitários, paradoxais à responsabilidade social e aos tratados internacionais subscritos pelo governo brasileiro.

Assim, a análise desse tema não pode ser tratada como pauta maniqueísta, de reserva teológica ou de fé dogmática, de decisões universais ou cartesianas. Pelo contrário, deve ser conduzida com respeito à bioética e às bases jurídicas e socioantropológicas existentes, orientando-se pela busca de soluções aos conflitos estabelecidos.

Portanto, para impedir que a transformação do direito à vida assuma o caráter de dever de sofrimento para milhares de mulheres, consubstancia-se a recomendação de outorga legal a uma Comissão Nacional para elaboração de diretrizes com a finalidade de ampliar os limites excludentes de ilicitude do aborto no Brasil: uma nação marcada por enormes diferenças a serem erradicadas com a ajuda da compaixão e da solidariedade.

Carlos Vital Tavares Correia Lima é presidente em exercício do Conselho Federal de Medicina (CFM); Desiré Carlos Callegari é 1º secretário e diretor de Comunicação do CFM.

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