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Imagem ilustrativa.| Foto: Fellipe Sampaio/SCO/STF

O conteúdo normativo no direito – a lei brasileira em geral – é para a maioria das pessoas um enigma, e não é surpresa que o Judiciário seja visto como um campo minado diante da incompreensão dos interesses que regem a vida em sociedade.

Se o legislador cria leis para que as interações sejam mais harmônicas e as condições mais favoráveis a todos, por que o texto é inteligível a uma minoria? É necessário que a norma esteja acessível para aqueles que precisam agir a partir dela. Somente com a consciência dos direitos é possível ter autonomia para exigir o cumprimento.

Talvez a linguagem seja uma das principais barreiras para que se consiga entregar um direito mais efetivo. Clareza, transparência e eficiência é o que profissionais jurídicos precisam entregar e isso só acontece quando colocamos o foco no usuário da informação ao qual a comunicação se destina. Como defende Cassie Nicholson, chefe do Conselho Parlamentar da Nova Zelândia, “nossa missão no mundo é criar leis que sejam acessíveis, adequadas ao propósito e constitucionalmente sólidas. A linguagem simples é fundamental para todas essas coisas”.

Informar não é comunicar, ou seja, há muitos aspectos que devem ser levados em consideração para transmitir uma mensagem e gerar conexão com o público. Dominique Wolton, sociólogo francês, diz que a comunicação sem relacionamento é apenas informação. Nesse sentido, informação que não comunica é ruído, e impede o processamento de conteúdos essenciais para que o princípio constitucional do acesso à justiça se cumpra. Já Alexandre Cesar, jurista brasileiro, diz que “dentro de uma concepção axiológica de justiça, o acesso à lei não fica reduzido ao sinônimo de acesso ao Judiciário e suas instituições, mas sim a uma ordem de valores e direitos fundamentais para o ser humano”.

Possibilitar que as pessoas tomem decisões mais conscientes e consequentemente reduzir os litígios, é a principal razão pela qual profissionais do direito devem buscar novas ferramentas e se mobilizar em todo o mundo em busca de uma linguagem mais clara na área jurídica. Se considerarmos alguns aspectos da psicolinguística, podemos chegar à conclusão que a leitura não é algo natural e que apresenta desafios envolvendo vieses cognitivos além de aspectos socioculturais, afetivos e pedagógicos.

Ou seja, todo indivíduo carrega significados, referências e valores particulares que interferem no modo como a decodificação e a compreensão da informação é realizada. São complexos os fatores que refletem no processamento e absorção durante a leitura. Quanto menos obstáculos existirem maiores serão as chances de uma comunicação plena ser atingida.

Uma equipe de designers liderada por David Berman trabalhou com o Departamento de Justiça do Canadá, e juntos desenvolveram uma nova comunicação da Lei de Seguro de Emprego utilizando as diretrizes da linguagem simples (plain language). Após a conclusão do projeto foi realizada uma pesquisa que revelou a satisfação e aceitação do público muito superior em relação ao formato anterior. Com a adaptação da linguagem e do formato da lei foi possível ao público encontrar a informação com maior facilidade, entender o conteúdo encontrado e usar a informação de acordo com as suas necessidades.

Em Portugal, uma série de documentos foi desenvolvida para o governo em linguagem simples e trouxe dados muito interessantes. Após a reescrita de formulários e requisições para o Balcão Nacional de Injunções (BNI), órgão que faz a cobrança de dívidas comerciais, o pagamento voluntário teve um aumento de 67%. Ou seja, menos processos nos tribunais e menos custos para as pessoas e para o Estado.

A Carta Portuguesa de Direitos Humanos na Era Digital, foi lançada oficialmente em julho do ano passado, lei inovadora que aborda questões extremamente importantes como os direitos relacionados ao acesso, uso e segurança de usuários do ambiente digital. Entre os vários pontos trazidos pela Carta, é um direito das pessoas obter informações claras sobre as condições de utilização das plataformas digitais. Entretanto, o próprio conteúdo normativo exige do cidadão comum esforço significativo para compreender minimamente os principais artigos trazidos pela lei.

Após conversa entre profissionais de Portugal e do Brasil, especialistas em design-comunicação, legal design e plain language, foi desenvolvido um projeto para a produção de uma Carta mais acessível e assim contribuir com o entendimento amplo das pessoas. O projeto está disponível na internet e traz os principais tópicos da Lei 27/2021.

Joseph Kimble, professor e fundador do Center for Plain Language, investigou sobre a efetividade da linguagem em organizações públicas e privadas. O resultado confirmou que a linguagem simples reduz o tempo para tirar dúvidas sobre documentos, numerosos erros gerados por textos mal escritos, além de aumentar de forma considerável a satisfação das pessoas.

O INAF (Indicador de Alfabetismo Funcional) aponta que o analfabetismo funcional atinge 29% da população brasileira. Diante de dados como esse, é contraproducente que profissionais do direito se relacionem com as pessoas de uma forma que elas considerem incompreensível ou pretensiosa. Algumas leis já trazem como princípio a utilização de linguagem acessível, porém mais importante do que a intenção trazida no ordenamento é a ação de planejar e tornar as leis e o conteúdo jurídico mais próximos da sociedade em geral.

Katsuren Machado, advogada e legal designer, é consultora especialista em Experiência do Cliente no Jurídico, professora, palestrante e pesquisadora de inovação e comunicação jurídica. É coautora do livro “Legal Design” (Thomson Reuters).

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