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Os presidentes do Brasil e da China, Lula e Xi Jinping.
Os presidentes do Brasil e da China, Lula e Xi Jinping.| Foto: EFE/EPA/KEN ISHII

É curioso o conforto sentimental que fotografias e filmagens, como a do manifestante diante dos tanques de guerra na Praça da Paz Celestial, tantas vezes ilustradas em livros de história ou reproduzidas em documentários sobre um tempo distante, são capazes de prover. Esse sentimento, de satisfação temerária, traz a muitos a impressão de que a era das opressões estatais não persiste mais, restando mero passado. Passamos a acreditar que, com o fim da “Era dos Extremos”, como a chamou Eric Hobsbawm, o período de conflitos interestatais e de crimes contra a humanidade teria passado ao estado de curiosidade histórica, e não de alerta para o futuro.

Os anos de 2021 e 2022, talvez de forma mais simbólica, serviram para abalar esse fácil conforto que pairava sobre o Ocidente global. Faz-se referência ao atropelado desembarque americano do Afeganistão e à invasão da Ucrânia, eventos que, embora infelizmente antecipados pelos partidários da real politiks, não contradizem com a história que queríamos esquecer... E agora somos obrigados a lembrar. Ainda assim, estes episódios, embora emblemáticos, não revelam o maior perigo autoritário em andamento, que, de forma estratégica, aproveita-se da desatenção das forças do Atlântico Norte para consolidar poderes ditatoriais sobre uma população muito maior, isso sem qualquer invasão militar ou demonstração de hostilidade externa.

O avanço do autoritarismo chinês não se restringirá a esse país. Será semeado e cultivado em outras nações, em meio à instabilidade.

Alertamos isso para chegar à primeira premissa deste artigo: a ausência de blindados de guerra nas ruas, como ocorreu em 4 de junho de 1989 na Praça Celestial ou ocorre hoje na Ucrânia, não significa que o autoritarismo e seus ditadores foram extintos. Não, eles se aperfeiçoaram. Os acadêmicos nomeiam esse fenômeno de constitucionalismo abusivo, isto é, pela literalidade do termo, Constituições não são mais rasgadas e revoluções não são mais proclamadas. Pelo contrário, as Cartas Magnas persistem, mas são alteradas de tal maneira que perdem sua essência, excluem-se seus valores e falecem suas garantias fundamentais; daí o abuso.

Chamamos a atenção para a China continental, sob o controle do Partido Comunista Chinês, que recentemente anunciou a reeleição presidencial de seu líder Xi Jinping para um incrível terceiro mandato. O placar da eleição? 2952 votos a favor e 25 abstenções, sem apresentação de candidato de oposição. Com essa “grande vitória”, o presidente reeleito torna-se o líder chinês mais longevo desde a instauração do regime de 1949, com exceção de seu conterrâneo Mao Zedong, um dos maiores ditadores – no pior sentido do termo – que a humanidade já sobreviveu.

A China, tornando-se mais autoritária, aliar-se-á com democracias ou outras ditaduras? Quais regimes ela empoderará? Quais líderes mundiais ela beneficiará?

Por certo, é fácil compreender que esse cenário não transparece democracia, pelo menos não no sentido de alternância de poder e pluralismo político. Contudo, o que assusta é que a República de Pequim afirma-se democrática, assim como vários outros regimes híbridos e autoritários espalhados pelo mundo. Afinal, a palavra “democracia” foi incorporada como meio de afirmação de legitimidade dos regimes políticos, e não como real manifestação de Estado de Direito, cidadania ou sufrágio universal, para elencar apenas algumas de suas características inderrogáveis.

Pois bem, a despeito de suas alegações, sabemos que a China continental não é uma democracia, mas por quê? Quais são as razões, fundamentos e parâmetros científicos que refutam o caráter “democrático” do PCC e de suas eleições quase à unanimidade? Ainda que a China não seja uma democracia plena, qual seria a tendência futura, a democracia ou a opressão? Isso justificaria a tolerância ou apaziguamento da comunidade internacional? Estes e vários outros questionamentos podem ser respondidos pelos renomados cientistas políticos Steven Levitsky e Daniel Ziblatt a partir de uma análise de sua obra Como as Democracias Morrem?, livro recente (2018), mas que se tornou um clássico imediato pela capacidade de síntese, esquematização e identificação das “democracias abusivas”.

A força internacional de maior ascensão hoje não é democrática e também não o será, daí o risco global crescente para todos os demais países. 

O livro propõe o seguinte exercício: identificar as características que unem os regimes autoritários do século XXI e compará-las com os representantes recentemente eleitos. Para fins de resumo, elencamos as quatro características que caracterizam um comportamento autoritário : (i) rejeição das regras democráticas do jogo; (ii) negação da legitimidade política dos oponentes; (iii) intolerância ou encorajamento da violência; (iv) tendência a limitar liberdades civis de oponentes, incluindo a mídia.

A partir destas características, podemos concluir se o líder chinês seria ou não um ditador. Primeiramente, Xi Jinping aceita as regras de uma eleição democrática? Não, porque defende, por exemplo, que sua “eleição” ocorra sem sufrágio universal, livre, secreto e periódico. Ele aceita a legitimidade de seus oponentes? Não, porque simplesmente não tolera sua existência, prendendo-os ou exilando-os, quando não demanda algo pior. Há o uso da violência política? Sim, não só pela perseguição já dita, mas pela forte opressão de minorias étnicas, como uigures e tibetanos, como também pela violência policial contra ativistas políticos em Hong Kong. As liberdades civis, entre as quais a de imprensa, é garantida? Não, pois a liberdade de manifestação é historicamente vedada desde 1949, passando pelo episódio da Praça Celestial em 1989 até os protestos de Hong Kong na atualidade, e uma vez que a mídia é estatizada e sujeita à censura prévia do PCC.

Resultado? Xi Jinping não é um democrata, mas um ditador eleito num regime autoritário que, pior, afasta-se cada vez mais de qualquer princípio de soberania popular em direção à perpetuação do poder e à eliminação de qualquer possibilidade de oposição política. Por isso, a “paciência” do Ocidente não se justifica. A China não está numa fase histórica de transição política ou progresso em direção à democracia, como se acreditava no passado. Muito pelo contrário, cresce sua relevância mundial, assim como cresce o poder central do PCC sobre sua população. A política de apaziguamento ocidental, fundada na percepção de que a abertura econômica levaria à abertura política, é nula e inefetiva frente às novas formas de opressão. Não há razão para paciência ou tolerância. A força internacional de maior ascensão hoje não é democrática e também não o será, daí o risco global crescente para todos os demais países.

Por fim, a China, tornando-se mais autoritária, aliar-se-á com democracias ou outras ditaduras? Quais regimes ela empoderará? Quais líderes mundiais ela beneficiará? O avanço do autoritarismo chinês não se restringirá a esse país. Será semeado e cultivado em outras nações, em meio à instabilidade. Outras repúblicas copiarão suas medidas na certeza de que receberão apoio. Aí reside o dever global de denúncia, aí reside a morte das democracias.

Rhuan Fellipe Cardoso da Silva, advogado, pós-graduando em Direito Internacional e porta-voz do movimento Democracia Sem Fronteiras Brasil.

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