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Rua XV
Vista noturna da Rua XV de Novembro. Imagem ilustrativa.| Foto: Daniel Castellano/Arquivo/Gazeta do Povo

O mundo é um lugar muito louco e complexo. Parte significativa dessa loucura é resultado da repercussão exterior de uma série de escolhas que fazemos todos os dias. Desde o instante em que acordamos, somos levados a um processo contínuo, consciente e voluntário de interação com o mundo, que nos exige várias tomadas de decisão. Cada uma delas nasce no recôndito de nossas mentes, local em que se processam as ideias, das surreais às mais banais. Então, elas são lançadas por sinapses como mensagens instantâneas aos membros do corpo responsáveis por concretizá-las nos atos exteriores que praticamos. Esta exteriorização produz resultados reais, esperados ou não, que se prendem a uma teia de relações com as demais escolhas individuais, construindo o mundo que carinhosamente chamamos de “lar”.

Como se não bastasse a complexidade do nosso universo, há quem diga que ele é apenas um dos ramos de um infindável multiverso composto de mundos paralelos que se desdobram a partir das inúmeras possibilidades decorrentes de momentos de decisão. A polêmica e controversa “intepretação de muitos mundos” (IMM), hipótese lançada pelo físico Hugh Everett, utiliza-se da mecânica quântica para afirmar a existência de outros universos formados a partir de concretizações das possibilidades já eliminadas no universo em que vivemos. O exemplo clássico é o experimento do gato de Schrödinger. Nele, um felino é colocado dentro de uma caixa com partículas radioativas que, se decaírem, causam sua morte. O observador, que está fora da caixa, não sabe o estado do gato, que só será definido a partir da observação, isto é, quando a caixa for aberta. Neste cenário, para o observador da caixa fechada o gato estará morto e vivo ao mesmo tempo e somente com a abertura do contêiner se descobrirá qual das possibilidades se concretizou.

Para a “interpretação de muitos mundos”, a hipótese ora eliminada, na verdade, ramifica-se em um universo diferente, no qual se realiza concretamente. Imagine, então, quantos cenários já teriam sido ramificados a partir de nossas escolhas pessoais? Se na adolescência você tivesse escolhido investir no talento para a música em vez de cursar Engenharia... se insistisse um pouco mais no casamento frustrado... se escolhesse pegar a estrada naquela perigosa noite chuvosa em vez de permanecer por mais uma noite no hotel... Enfim, cada escolha concretizada neste universo corresponderia a uma possibilidade aqui eliminada, mas real em um mundo alternativo, onde poderíamos estar mais ricos, mais famosos, mais tristes, mais estressados ou até mesmo mortos.

Embora a hipótese seja sedutora, uma das principais objeções à “interpretação de muitos mundos” diz respeito à ausência de evidências quanto à existência de universos paralelos. De fato, a verdade é que só possuímos nossa própria realidade e o único lugar em que podemos acessar todas as alternativas possíveis às nossas escolhas é na própria imaginação. Até seria acalentador imaginar que, em algum ponto do multiverso, uma versão minha viveria livre da pandemia... Por outro lado, seria aterrorizante pensar que outra versão poderia ter sido ceifada pelo vírus.

Seja como for, para todos os efeitos práticos nós estamos perpetuamente vinculados às consequências concretas das escolhas que fazemos no aqui e no agora. Governantes escolhem políticas públicas que impactam a todos; o rapaz escolhe convidar a crush para sair; o ladrão escolhe roubar a joalheria; e assim se dá a construção da vida em sociedade. Na interação entre nossas decisões ocorrem as frustrações, surpresas, incompatibilidades, acertos, arrependimentos e satisfações, ou seja, tudo o que traz significado à existência individual. É no mundo real que se traça o genuíno caminho para construirmos a própria felicidade.

Tudo isso concretiza um valor intangível que chamamos de liberdade. O poder de ser livre se corporifica justamente a partir de escolhas individuais, das quais absorvemos a prazerosa sensação de tomar as rédeas da vida e desvendar o caminho misterioso da existência, projetando amanhãs e agindo no presente para viabilizar tais projetos.

De uns tempos para cá, porém, o mundo virou. Inseridos em um ambiente sufocante de crise generalizada, somos gradativamente levados a assumir escolhas prontas e bloquear a própria liberdade de definir nosso destino. Por um lado, do ponto de vista das nossas ideias, cartilhas ideológicas já perfilam no cardápio os posicionamentos que devem ser adotados, valores a serem defendidos e discursos para serem encampados. Até as palavras que precisam ser ditas ou escritas já são preconcebidas, aguardando apenas o contexto certo para seu emprego ser passível de lacração. Por outro lado, do ponto de vista de nossas ações, protocolos e mais protocolos são lançados todos os dias para as mais diversas situações, como se cada circunstância da vida pudesse ser respondida dentro de um roteiro de cinema elaborado por autoridades públicas, influencers digitais ou “renomados especialistas”. Tudo isso ressoado por militâncias que tocam seus enviesados alarmes apocalípticos.

O fato é que estão escolhendo por nós e não estamos nos dando conta disso (ou, na pior hipótese, deixamos que assim façam). A internet está apinhada de gente dizendo o que precisamos fazer, comer, vestir, treinar, usar, ler, entender, investir, praticar, rezar, comprar, crer, vender, trocar, processar, perdoar, xingar, e por aí vai. Impulsionam-nos cursos e mais cursos que apresentam técnicas infalíveis, métodos-relâmpago, cinco passos para..., tudo isso poluindo nossas mentes com as escolhas dos outros, validadas por uma cultura nem um pouco autêntica que premia o mimetismo burro se este for o caminho mais rápido para atingir uma pretensa felicidade.

Só que este mundo de “pratos prontos para delivery” está nos fazendo sofrer de indigestão.

Estamos diante de uma onda de determinismo deliberada quase que exclusivamente por uma cultura pobre e uma pandemia trágica. Prendemo-nos de tal forma às cartilhas e aos protocolos que perdemos a capacidade de pensar e escolher. E, na insegurança de viver pelas próprias escolhas, estamos nos tornando pessoas robóticas, que agem para serem aceitas e seguirem o mainstream. Ao mesmo tempo, agentes públicos e líderes carecem de gestão criativa diante da necessidade de sustentar suas posições predeterminadas.

Assim, o período mais crítico e assustador enfrentado por nossa geração exige de nós escolhas melhores, mas, paradoxalmente, nos desincentiva a efetivamente escolhê-las. Parece-me a grande caverna de Platão, com seus fantoches dizendo que o mundo precisa ser drama e sofrimento. Quem terá coragem de se libertar da mídia tóxica, da ideologia interesseira, dos influencers vazios e de toda a turba que forma a bagunçada opinião pública atual para ver o sol brilhar no horizonte?

Sorte a nossa que, embora esse aprisionamento pareça ser ubíquo, é incapaz de nos privar do único elemento que corrói suas correntes: a liberdade para ser livre, isto é, a capacidade de voltar a escolher o próprio destino. Afinal, a felicidade não está orbitando em um universo paralelo; ela está disponível para o aqui e o agora.

Leonardo Dantas Costa é advogado e autor dos livros “Delação Premiada” e “Reflexões em tempo de pandemia”.

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