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Hoje preciso descumprir, ao menos em parte, o que ordenam as ótimas teorias jornalística e literária. Não há nariz-de-cera nem autoridades, terceira pessoa ou analogias. Hoje preciso ser cru. Quero falar de algo que sofro na pele. Na minha pele negra. Quero falar do que denominei “escravidão branca”.

A escravidão branca é imposta ordinariamente aos negros e pobres pelo escravocrata branco, que pode igualmente ser negro e pobre. Esse tipo de escravocrata usa menos violência física que aquele do século 18, pois não há espaço para chibatas nas universidades, escolas e reuniões de condomínio. Contudo, o escravocrata do século 21 é muito mais controlador que seu antecessor. Afinal, no século 18 a escravidão original permitia ao escravo pensar o que quisesse, cantar o que quisesse, vestir o que quisesse, contanto que cortasse a cana-de-açúcar com a rapidez e a docilidade necessárias à causa do senhor de engenho.

A escravidão do século 21 pretende estender seus grilhões até o espírito de suas vítimas

A escravidão atual, essa que resolvi chamar de branca, igualmente impõe a suas vítimas que trabalhem por uma causa – não a causa do senhor do engenho, mas a causa do sindicato, a causa do partido, a causa da teoria crítica... entretanto, não se satisfaz com isso. A escravidão 2.0 quer controlar ideias, policiar opiniões, limitar vocabulário, ridicularizar crenças, absolutizar discursos, eliminar contraditório, reduzir liberdades.

Para o escravocrata branco é um absurdo sem tamanho um negro ou pobre não ratificar o discurso vitimista e ineficaz por detrás das cotas raciais para universidades; para o escravocrata branco é uma traição um negro ou pobre ultrapassar o quebra-mar das injustiças no Brasil e ousar – sim, ousar! – questionar o discurso único da política nacional; para o escravocrata branco é um acinte incomensurável um negro ou pobre duvidar das intenções de um Estado inchado, que pretende se intrometer em todo e qualquer assunto da vida dos seus cidadãos; para o escravocrata branco, todo bem e justiça foram monopolizados pelos discursos socialistas e ele não concebe alguém – especialmente negros e pobres – que tenha uma visão histórica menos restrita e mal informada.

A escravidão 2.0 é míope historicamente, pois não reconhece Machado de Assis; é estéril economicamente, pois não explica Edson Arantes do Nascimento; é injusta intelectualmente, pois faz pouco do esforço de Luiz Gonzaga Pinto da Gama. E o mais importante: a escravidão branca é a mais cruel das escravidões porque não se limita a agrilhoar o negro e o pobre nas novas senzalas de vidro e neon dos shopping centers, algemando-os a smartphones modernosos. A escravidão do século 21 pretende estender seus grilhões até o espírito de suas vítimas, impondo-lhes o que pensar, como se vestir, em que acreditar. Se possível fosse, tais senhores puniriam com a chibata do escárnio e do descrédito todos os escravos fujões dessa senzala cultural. Afinal, esse ser estranho, o escravocrata do século 21, acredita que nenhum negro ou pobre conseguiria ultrapassar seus limites sem os auxílios que ele acredita prover e, por isso, pensa ele, é uma traição imperdoável fugir dessa senzala de bondade.

A má notícia para os escravocratas brancos é que ainda há escravos fujões por aí. E seu número tem aumentado consideravelmente.

Robson de Oliveira é professor de Filosofia da PUC-RJ, membro do CTSmart e diretor do Centro Dom Vital.
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