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| Foto: Robson Vilalba/Thapcom

Em época de pós-verdade, retórica é método. Se alguém não usa a linguagem com o objetivo do entendimento, instrumentaliza a fala, politiza os adjetivos, tortura as vírgulas, banaliza as interjeições, fulaniza o debate e cria o caos. Claro que linguagem não é tudo. Dizer isso seria abandonar a verdade, erguer um altar à interpretação e ao mal-entendido, dar adeus à convivência e à saúde mental. Poder surpreender as mesmas coisas debaixo das mesmas palavras é certamente um modo de manter os pés no chão. Até quando voa, a imaginação mantém suas asas em equilíbrio, ou nem a fantasia faria sentido. Mas, no afã de saraivar seus discursos, metralhar suas vozes, muitos utilizam artifícios intrigantes, como uma granada falsa, uma coisa estranha, feita para dar poder a um discurso através do medo. Isso tem acontecido muito quando se diz que alguém está passando “vergonha”.

Vejo constantemente em debates públicos, pessoalmente ou em redes sociais, alguém manifestar sua opinião e ser censurado porque estaria passando “vergonha”. Vou lá e digo que sou contra o aborto, logo vem alguém e diz que “todo dia um macho passa vergonha”. Alguém canta um samba com versos de amor, expressa sua admiração pela arquitetura medieval, afirma que nem tudo é homofobia, e logo alguém diz: “Está passando vergonha, coleguinha”, “Que vergonha, hein?!”. O aparecimento recente da expressão “vergonha alheia” pode ser sintoma disso. É preciso entender a lógica da vergonha e por que determinados discursos insistem em imputar ao outro uma “vergonha” que o outro pode muito bem nem estar sentindo. Que função tem essa retórica da imputação de vergonha?

É preciso entender a lógica da vergonha e por que determinados discursos insistem em imputar ao outro uma “vergonha”

Para começar, é preciso dizer que essa arma pode ser falsa, mas é pesada. A vergonha é um sentimento insuportável. Entre as paixões humanas, tem lugar especial. Quem, quando criança, foi surpreendido fazendo algo errado, pego na mentira, sentiu o desconforto de uma reprovação moral talvez pior do que a violência física do castigo? A vergonha coloca o indivíduo diante de si, abriga-o a ser juiz e réu de si. A vergonha é quando você é o policial que pega você mesmo em flagrante. E você não sabe o que fazer de você mesmo, não sabe se solta você ou se foge de você. Nesse dilema, não sabe onde se pôr, quer sumir, não exatamente fugir. É um tipo de punição extremamente perversa e eficaz, porque é o próprio envergonhado que se conduz, sozinho, a um cadafalso que está todo em sua mente.

Em pensamento, o envergonhado imagina que uma multidão o está “vendo”. Ou melhor, ele se angustia ao se perguntar “quantos estarão me vendo?”. No seu desespero, ele exagera quanta gente o está reprovando, e qualifica esta multidão, tomando-a em alta conta. E ele se pergunta “quem estará me vendo?”. Aqui há uma diferença importante. A vergonha real é a que se sente mesmo sem ninguém por perto. Por isso não se trata de defender os sem-vergonha. Mas, se um grupo sabe do seu poder sobre alguém, pode envergonhá-lo com qualquer besteira. É assim que um grupo de esnobes pode dizer que alguém passou vergonha só por ter usado uma cor de roupa numa dada ocasião. Pela imputação de vergonha, um grupo pode exercer toda a sua tirania.

Leia também: Eu, você e a pós-verdade nossa de cada dia (artigo de Jeferson Ferro, publicado em 21 de maio de 2017)

Nossas convicções: O valor da comunicação

Nesta vergonha irreal, a ameaça é só a de que você não fará mais parte do grupo, porque destoou dele no gesto vergonhoso. Esse tipo de grupo se fortalece, portanto, na fraqueza mental de seus membros. Só se sentem confortáveis em grupo; aquele que se sente fora dele desespera, o que está nele reforça seu pertencimento imputando vergonha a um com ajuda de muitos. Esse tipo de grupo, que se sustenta não porque acredita que sua causa é justa e verdadeira, mas apenas por ser um grupo, é próprio das coisas contemporâneas, sem estofo, que se mantêm apenas porque muita gente repete a mesma coisa. E essa gente qualifica-se, quer ser tida em alta conta, distinguir-se das pessoas comuns. É a moda, o tribalismo psicológico das grandes metrópoles, das exposições de arte e das discussões identitárias. Quem anda de patota é covarde, dizia meu velho pai. A aparente valentia de uma geração esconde a covardia real dos indivíduos, dizia o filósofo Karl Löwith.

Argumentos são pouco eficazes em garantir solidariedade social. Violência não condiz com a autoimagem que um grupo moderno e esclarecido precisa fazer de si. Então, a vergonha se torna um instrumento valioso. Como não há fundamentos, resta ao grupo distinguir-se com algo “mais atual”, “do momento”. O valor histórico, mutável, substitui qualquer valor substancial que futuramente possa prejudicar a manutenção do conjunto. O grupo só se sustenta no grupo; então, todo conteúdo deve ser relativizado, a qualquer momento uma ideia antes abandonada é recauchutada e aproveitada. Por isso o grupo é imprevisível e seus membros, inseguros. Cada um está sob constante ameaça de ser o próximo envergonhado. Dizer que alguém está passando vergonha, portanto, é tentar empurrar a pessoa ou para o passado, com a pecha de ultrapassado, ou para algo fixo, com a pecha de dogmático e cabeça-dura.

Isso que eu já vinha observando, só agora pude entender. Porque me ocorreu um fato muito curioso dias atrás. Várias pessoas me disseram que eu estava passando vergonha porque me expressei, numa dada ocasião, contra o aborto. Mas vergonha era o último sentimento que passava no meu interior. Aquilo me intrigou. E eu senti uma vergonha – esta, sim, real – por pessoas que querem fazer os outros o tempo todo sentir uma vergonha que não existe. Tentaram ameaçar-me com uma granada de brinquedo. Vou jogar bola com ela.

Arthur Grupillo é jornalista e professor de Filosofia da Universidade Federal de Sergipe. É autor de “O homem de gosto e o egoísta lógico: uma introdução crítica à estética de Kant”.
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