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É de 1977 o conhecido filme "Esse Obscuro Objeto do Desejo", de Luis Buñuel (1900–1983), o rebelde e irreverente cineasta espanhol do surrealismo. Nele, um milionário de meia-idade (Fernando Rey) alimenta uma paixão ardente por uma bela jovem (Carole Bouquet), que, apesar de dizer amá-lo, recusa-se a entregar-se a ele, nunca o satisfazendo integralmente; e toda a estória gira em torno do enigma dessa ânsia desmedida – aí o objeto do desejo original.

A história dos tributos no Brasil – diz Souto Maior Borges – corresponde à história das suas numerosas e abundantes reformas tributárias. Sempre insatisfeitos e ávidos por mudanças no sistema de tributos, tanto o governo quanto os contribuintes nutrem uma sede imoderada pela reforma, que, não obstante muitas vezes realizada, nunca os saciou de todo; e a história inteira gravita ao redor do mistério dessa voracidade sem limites – aqui outro objeto do desejo, muito similar ao primeiro.

É adequada a analogia porque, tal como no filme, a cobiçada reforma exibe uma obscuridade inegável. A expressão "reforma tributária" constitui uma "fórmula elástica", uma "fórmula de goma", uma expressão "camaleão". Sua vagueza manifesta-se no que diz respeito à extensão, porque seu significado pode variar desde uma ampla reforma constitucional tributária, que venha a atingir a estrutura essencial do nosso sistema, bulindo nos seus princípios fundamentais e alcançando a maioria dos tributos – da qual, registre-se, não carecemos – até algumas específicas, modestas e acanhadas alterações na legislação ordinária de um determinado ou de alguns dos nossos tributos – essas sim, apetecíveis. Mas sua vaguidade mostra-se ainda no que tange à intenção, porque, para o governo, eternamente faminto por receitas, "reforma" tem o sabor inconfundível de aumento de arrecadação; enquanto para os contribuintes, constantemente combalidos e prostrados pelo peso incômodo e sofrido dos tributos, "reforma" ostenta a conotação inevitável de redução da carga tributária.

Contudo, nossa inquietação com o cunho obscuro desse objeto do desejo é largamente excedida pelo desassossego que nos causa seu caráter, mais do que astucioso ou ladino, matreiro, e mesmo ardiloso! Não é sem razão, nem à toa, que Souto invoca, aqui, a palavra "armadilha"! Eis que nossas sucessivas e intermináveis reformas correspondem a uma história das mais generosas expectativas, pois os objetivos declarados – a simplificação dos tributos ou a diminuição do ônus tributário – são sempre atraentes e sedutores; mas essa é igualmente uma história da mais insensível frustração dessas expectativas, uma vez que os resultados são invariavelmente marcados pela decepção e pelo desapontamento: a majoração da carga tributária!

Por isso as propostas de reforma tributária, sobretudo as oriundas do governo, apresentam essa inelutável artimanha. Hoje tramita no Congresso Nacional a PEC n.º 62/2007, parte ainda remanescente da mesma proposta que redundou na Emenda Constitucional n.º 42/2003. Ilustremos o referido artifício manhoso, pela memória de que a Exposição de Motivos daquela proposta proclamava buscar um "... amplo e salutar fortalecimento federativo...", mas promovia uma radical centralização das normas do ICMS, num manifesto assalto à autonomia dos estados e numa flagrante violação do Princípio Federativo; apregoava, para a CPMF, "... o propósito de estabelecer a redução da sua alíquota...", mas revogou expressamente uma redução programada da alíquota desse tributo para 0,08%, mantendo a anterior alíquota de 0,38%, numa cínica e despudorada contradição com o propósito alardeado! Por isso, lembramos, comentando-a, que Nicolau Maquiavel, o filósofo de "O Príncipe", apontava duas virtudes no político, a coragem e a habilidade, representadas, respectivamente, pelo leão e pela raposa; e o fizemos para concluir que os políticos que atuaram nessa proposta substituíram a força do leão pela debilidade do gatinho e a astúcia da raposa pela malandragem da hiena.

Em face desse objeto do desejo obscuro e ardiloso, não nos parece haver melhor resposta para a indagação formulada, senão afirmar que prioritário mesmo, numa reforma tributária, muito mais do que essa ou aquela mudança, é a atitude governamental: primeiro, da clareza e transparência que afastem a obscuridade; segundo e sobretudo, da absoluta conformidade entre as intenções declaradas e as efetivadas, arredando a artimanha. Somente assim a atual proposta de reforma tributária não será, como as anteriores, um projeto que se prenuncia como uma reforma de leões e de raposas e que acaba se revelando uma reforma de gatinhos e de hienas!

José Roberto Vieira é professor de Direito Tributário da UFPR, da Unicuritiba e do Ibet (graduação, especialização, mestrado e doutorado); mestre e doutor em Direito do Estado – Direito Tributário (PUC/SP); e fez estudos pós-graduados no Instituto de Estudios Fiscales (Madri, Espanha). É ex-membro julgador do Conselho de Contribuintes do Ministério da Fazenda e auditor da Receita Federal em Curitiba.

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