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Vou à Universidade Federal do Paraná (UFPR) e deparo-me com as seguintes situações: servidores que recolhem donativos para o Hospital de Clínicas agradecem dizendo "deus lhe pague"; servidores da universidade usam o e-mail institucional para fazer propaganda religiosa ou tendo citações bíblicas na assinatura; comissões internas iniciam ou terminam seus relatórios rogando a deus seus favores; no HC servidores entregam, entre folhetos explicativos, alguns dizendo como deus é bom; na biblioteca do Setor de Tecnologia há uma bíblia aberta logo na entrada, em uma mesa em destaque; na biblioteca das Ciências Humanas, também com destaque, há um crucifixo com quase um metro de comprimento; por fim, para comemorar o cinqüentenário da Capela Universitária, a reitoria encomendou uma missa, amplamente divulgada.

Embora pareçam próprias a universidades confessionais, essas situações são corriqueiras na UFPR (aliás, elas são corriqueiras em inúmeras outras universidades e instituições públicas do Brasil).

Daí que a UFPR é uma instituição laica, que não professa nem pode professar nenhuma crença religiosa. Isso significa que a universidade não pode ostentar crucifixos nem colocar bíblias para "reflexão pública"; também significa que a universidade não pode encomendar missas ou cultos religiosos; também significa que os servidores da universidade não podem referir-se a deus ou a suas crenças pessoais enquanto estiverem trabalhando na universidade ou estiverem representando-a.

As universidades públicas integram o Estado brasileiro e o Estado brasileiro é laico: não tem crença nenhuma. O princípio da laicidade do Estado é tão simples de enunciar quanto, à primeira vista, difícil de praticar. Como vimos, ele consiste simplesmente em que o Estado não tem religião, o que equivale dizer que as estruturas políticas e burocráticas – os órgãos públicos, em outras palavras – não podem beneficiar nenhuma religião nem podem professar nenhuma fé. Afinal de contas, enquanto estão no exercício de suas funções, esses cidadãos referem-se ao conjunto da coletividade, isto é, a todos os brasileiros, e não apenas aos membros de suas próprias igrejas.

O Estado laico é o garantidor das liberdades verdadeiramente fundamentais, as de pensamento e de expressão: sem elas – sem que seja possível a cada indivíduo pensar por si próprio e dizer o que pensa sem medo de retaliação –, nenhuma outra liberdade é possível e a cidadania torna-se apenas uma palavra.

No Brasil, o Estado laico foi instituído em 1890, com a proclamação da República. Com Benjamin Constant à frente, os participantes da proclamação buscavam uma sociedade de liberdades, com desenvolvimento e justiça social. Os fundadores da UFPR tinham exatamente os mesmos valores: ao criarem em 1912 a então Universidade do Paraná, João Pernetta, Benjamin Lins, Victor Ferreira do Amaral e, mais do que todos, Nilo Cairo queriam desenvolver a sociedade paranaense em termos materiais, intelectuais e morais por meio do ensino superior. Juntamente com esses valores, sabiam que a separação entre Igreja e Estado é condição fundamental para qualquer sociedade progredir. Eles tinham horror à idéia de um Estado que patrocine ou permita em seu interior práticas religiosas – mas no e pelo Estado; não na sociedade.

Há algum tempo a UFPR comemorou seus 90 anos: apesar da propaganda sobre o "papel que desempenha na sociedade paranaense", não houve uma única menção aos seus fundadores; na verdade, exceto alguns poucos, o fato é que a comunidade universitária ignora quem foram esses fundadores e quais os seus ideais. Face à missa que a reitoria da UFPR mandou rezar e a todas as manifestações de imbricação entre igreja e Estado na universidade, essa ignorância não poderia ser mais emblemática. Passamos da Universidade Federal do Paraná para a Universidade Confessional Federal do Paraná.

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR.gblacerda@ufpr.br

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