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Eletrobras
Imagem ilustrativa.| Foto: André Coelho/EFE

Em 24 de outubro de 1991, o Brasil viveu um momento que podemos chamar de referencial para o processo de desburocratização do país. Foi nessa data que a Usiminas deixou as mãos do governo para ganhar o contorno da iniciativa privada e tornou-se a primeira empresa a sair do papel para o mundo real do Plano Nacional de Desestatização. O martelo batido foi um divisor de águas entre a modernidade e o Brasil arcaico e significou o primeiro passo de tantos que vieram depois e demonstraram a necessidade de oxigenação do nosso Estado.

Nos anos seguintes, outras quatro empresas do ramo siderúrgico foram passadas para frente, entre elas a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e com isso fechou-se o ciclo do aço. Poucos anos depois, chegou a hora da segunda fase do processo, com privatização dos serviços — em especial o da telefonia, que representa um do cases mais emblemáticos de um processo extremamente bem-sucedido no nosso país.

Para quem não se lembra mais ou ainda não era nascido, é sempre bom recordar que há pouco mais de 20 anos uma linha telefônica custava cerca de mil dólares. Era inacessível para população mais carente e a instalação de um telefone fixo demorava entre 1 e 2 anos. Uma linha era algo tão caro que as pessoas declaravam no imposto de renda como patrimônio e havia inclusive aluguel de linhas para quem não quisesse ou não pudesse esperar. Existia até um mercado negro com instalação mais rápida, porém, a custos que alcançavam dez mil dólares. Hoje uma linha é gratuita e a instalação imediata, só para citarmos dois benefícios com essa privatização.

Com algumas concessões, as rodovias também trocaram de mãos nessa onda privatizante e um observador mais animado poderia ter dito na época que o Brasil iria deslanchar. Mas não foi bem assim.

Há um discurso corrente baseado na ideia de que as estatais são um patrimônio brasileiro e que este nunca deve ser vendido, mesmo quando venha a causar prejuízos ao erário.

Com o passar dos anos, as privatizações perderam força e estacionaram. Atualmente, o governo federal possui aproximadamente 180 empresas estatais, entre matrizes ligadas diretamente à União, subsidiárias e outras dezenas mais ligadas a estados e municípios. A maioria delas é completamente desconhecida dos brasileiros. Algumas têm inclusive nomes curiosos e funcionalidades para lá de duvidosas. Como é o caso da Amazônia Azul (Amazul), que tem a responsabilidade de desenvolver tecnologias para o programa nuclear brasileiro, especialmente o submarino nuclear.

Também temos a 5283 Participações, uma empresa criada pela Petrobras para que a petrolífera tenha participações societárias em outras empresas. Complicado, não? Ainda temos a Ceitec, empresa que produz o chip do boi, Nuclep, Ceasaminas, Hemobrás, Valec, EPL (empresa que deveria viabilizar o trem-bala), e por aí vai.

Não podemos esquecer a cereja do bolo que é a Natex, a estatal que fabrica camisinhas no Acre. Isso mesmo. Ao que consta, a empresa surgiu como uma alternativa sustentável para o abastecimento nacional de camisinhas, mas o que se vê de fato é um elefante branco encravado na cidade de Xapuri cuja produção volta e meia é paralisada por conta de greves devido ao atraso dos salários. A empresa está sempre acumulando prejuízos e sua existência é difícil de ser explicada.

Mas qualquer empresa que tenha como seu maior acionista o Tesouro nacional, a rede de incentivos funciona de maneiras um tanto distintas. Eventuais maus negócios e seus subsequentes prejuízos ou descapitalizações serão prontamente cobertos pela “viúva” — ou seja, por nós, pagadores de impostos, ainda que de modos rocambolescos e indiretos.

Mais: uma empresa ser gerida pelo governo significa que ela opera sem precisar se sujeitar ao mecanismo do lucro. Todos os déficits operacionais serão cobertos pelo Tesouro, que vai utilizar o dinheiro confiscado via impostos dos desafortunados cidadãos. Uma estatal não precisa de incentivos, pois não sofre concorrência financeira — seus fundos, oriundos do Tesouro, em tese são infinitos. Por que se esforçar para ser eficiente se você sabe que se algo der errado a “grande mãe” estará ali para te ajudar?

Costumo dizer que é como um “pernilzão” que atrai moscas e o medo de privatizar ou se desvincular dessas amarras dificilmente atrai interesses republicanos. Pude verificar isso com meus próprios olhos, pois, quando eu integrava o governo federal e estávamos estruturando os termos da privatização da Eletrobras, recebi muitos parlamentares na minha sala para discutir o projeto. E todos só queriam saber a respeito dos cargos que deixariam de existir caso a privatização fosse efetivada. Não teve nenhum deles que tivesse levantado a preocupação a respeito dos desdobramentos da conta de luz para o bolso do contribuinte. Não, eram só moscas ávidas encima do enorme pernil.

No texto que circulou no Congresso sobre a privatização da Eletrobras, foram enfiados jabutis de todos os tipos: para fazer com que os cargos comissionados fossem remanejados, para garantir que grandes obras como gasodutos e linhões fossem construídos por escolha do Congresso e para subsidiar por mais tempo energias poluentes. De novo, o pernil rodeado de moscas.

Há um discurso corrente baseado na ideia de que as estatais são um patrimônio brasileiro e que este nunca deve ser vendido, mesmo quando venha a causar prejuízos ao erário. Isso ocorre quando somos obrigados a aumentar impostos para mascarar a ineficiência da estatal, muitas vezes para manter empregos de fachada e aumentar ainda mais os escândalos de corrupção. Mas para esses defensores isso tudo é secundário, pois as estatais passaram a ser “santificadas” de maneira quase irracional.

Mas será mesmo que em detrimento desse orgulho nacional precisamos de estatais para gerir postos de gasolina mesmo existindo várias empresas, nacionais e estrangeiras, que operam neste setor no Brasil inteiro? Precisamos mesmo de emissoras de televisão e de rádio onde existem milhares de empresas privadas no setor e que de fato atendem a todo o país?

Apesar dos avanços observados e da ambiciosa agenda de desestatização prevista, não devemos subestimar a complexidade do processo e os obstáculos nos próximos anos. Essa pauta deverá perdurar por pelo menos mais uma década, havendo vontade política de avançar e compreensão da sociedade de sua importância. Há, inclusive, perigo de retroagir, o que seria um crime, pois a redução na quantidade de empresas públicas no país é essencial para reequilibrar as contas do governo e retomar a capacidade de investimento do Estado. Não há outro caminho, pois não privatizar tem servido para deixar a economia em estado de inanição permanente. E toda a sociedade paga por isso. É aquela velha história do provérbio árabe: por causa da rosa, a erva daninha acaba sendo regada.

Marina Helena Santos, economista, foi diretora de Desestatização do Ministério da Economia em 2019 também foi CEO do Instituto Millenium. É fundadora do Movimento Brasil Sem Privilégios.

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