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Sergio Moro durante a solenidade de filiação ao Podemos.| Foto: Robert Alves/Podemos

Outro dia mesmo fui surpreendido com a abordagem de um querido casal de amigos democratas, ela bolsonarista e ele lulista, ambos afirmando, em linhas gerais, com argumentos diversos, às vezes opostos, que não acreditavam no que estavam assistindo: “Morro e não vejo tudo”, disse um deles. Os dois teciam críticas pesadíssimas, a partir de informações recebidas nas redes sociais, contra a pré-candidatura presidencial do ex-juiz Sergio Moro. Considerando a entrada de Moro na política um absurdo, demonstraram toda insatisfação ao concluir que Moro não passava de um tecnocrata oportunista, traidor e picareta, criminoso que usou a magistratura para se promover pessoalmente, possuindo contatos ocultos com agentes do governo norte-americano, tendo inventado a Lava Jato para destruir e desabonar a vida de pessoas honradas, sendo assumidamente contrário ao livre exercício das liberdades individuais, enfim, um desqualificado sem qualquer preparo ou condições de assumir a responsabilidade que demanda o cargo de presidente da República. Sem entender muito o tiroteio de argumentos que se confundiam, apenas indaguei: Será mesmo? Mas, afinal, candidaturas como as de Sergio Moro são salutares para o amadurecimento da política e o fortalecimento da democracia nacional?

Inicialmente, não há como negar, em tempos de polarização radical entre petistas e bolsonaristas – às vezes, até violenta – parece “positiva” a concordância inédita daqueles que discordavam incondicionalmente, não importando o mérito do assunto ou o questionamento debatido: “Se você pensa assim, eu penso ao contrário”, era até então a lógica da polarização desenfreada e sem limites, apresentada de forma generalizada e agressiva nas redes sociais. Aliás, além dos torcedores fanáticos das redes sociais, merece reflexão o fato de políticos bolsonaristas e petistas terem se unido nas críticas à filiação de Moro ao partido Podemos. Como se constatou expressamente em notícias veiculadas nos meios de comunicação, só para dar um exemplo, Eduardo Bolsonaro, o ex-ministro Ricardo Salles e deputados do Partido dos Trabalhadores se apressaram a ironizar e desqualificar a entrada de Moro para a política. Mas não estão sozinhos: outros pré-candidatos que buscam se apresentar como uma terceira via, vendo na candidatura de Moro uma ameaça às suas pretensões, apelaram para as agressões verbais e a utilização repetida de fake news.

Pois bem, longe de discursos raivosos e agressivos comprometidos com a desqualificação generalizada de indivíduos, grupos e novos projetos políticos – baseados na “reserva de mercado” para o uso do poder público, político, econômico e de autoridade –, cumpre recordar que a estratégia de desqualificação eleitoral de adversários políticos não é instrumento novo ou incomum nas eleições brasileiras. Muito pelo contrário! No caso das próximas eleições, onde a situação dominante é marcada por uma polarização radical entre dois candidatos, é interessante para ambos manter a situação como se encontra, ou seja, que ambos sejam as únicas opções eleitorais no pleito de 2022. Para que este quadro assim permaneça, governo e oposição podem trilhar o caminho usual: desqualificar o candidato da terceira via que se destaque e se apresente como ameaça à manutenção do poder entre os candidatos polarizados. Quando isso ocorre é péssimo para os candidatos polarizados, especialmente quando ambos possuem índices elevados de rejeição. Uma terceira via que se apresente como uma opção estratégica viável e diferenciada pode mudar as “regras do jogo político”. Isso bagunça a estratégia dos donos da política e ameaça os espaços ocupados tradicionalmente por políticos profissionais, tornando incerto o embate eleitoral e prejudicando a garantia da continuidade do domínio polarizado.

Além de tumultuar as regras do jogo estabelecido pelos donos da política, o crescimento de uma terceira via alheia aos acordos tradicionais estabelecidos entre políticos tradicionais – que migram de partidos e de grupos de apoio político conforme conveniências e interesses pessoais – estabelece uma possibilidade desconfortável para o futuro da divisão dos dividendos políticos e eleitorais pré-estabelecidos previamente. A política dominante, que tem uma enorme vantagem eleitoral sobre os seus oponentes, pode sofrer um duro golpe com uma candidatura estabelecida numa terceira via fora do formato usual da política tradicional. Em situações dessa natureza, por implicação lógica, aos candidatos polarizados restam apenas duas alternativas: enfrentar o debate político com argumentos e projetos propositivos para a resolução e enfrentamento dos problemas; ou, como já começamos a assistir, desqualificar, atacar e denegrir o invasor indesejado no mundo que só deveria pertencer aos políticos profissionais.

(…) se Lula e Bolsonaro, dentre outros governantes que já tiveram suas chances, não conseguiram estabelecer uma democracia material plena com oportunidades plurais (em igualdade de condições) para todos os brasileiros, haja vista que acabaram compondo com os grupos políticos tradicionais – sempre centralizados no comando do poder –, por que não dar uma oportunidade a Sergio Moro?

No atual quadro político polarizado, o debate franco com uma terceira via que se destaque significa possibilitar uma derrota inesperada, não sendo recomendável estabelecer um fórum de ideias em busca da boa governança e do estabelecimento de políticas públicas necessárias para a superação da atual crise mundial, notadamente no que diz respeito à legitimidade das instituições. Portanto, para campanhas estabelecidas na polarização onde se apresentam unicamente duas possibilidades, uma de direta e outra de esquerda (notadamente quando ambas apresentam fortes índices de rejeição), só resta uma alternativa: desqualificar o adversário político – no caso de Moro, rotulando-o como um tecnocrata oportunista que usou a magistratura e a Lava Jato para se promover politicamente. Diante da lógica tradicional dos donos da política, com ou sem polarização, quaisquer propostas ou estratégias políticas que se apresentam fora das regras do jogo político-eleitoral podem se apresentar como uma conspiração internacional ou como um perigoso entrave à nação. Para eles, em termos práticos, os eleitores brasileiros têm apenas duas possibilidades: os extremos radicais, de direita e de esquerda, que apresentam estratégias eleitorais baseadas em fake news, negacionismo e estímulo às agressões.

Polarização marcada por negacionismos que ignoram fatos e acontecimentos. De um lado, um (des)governo que, dentre outros absurdos, nega a crise sanitária mundial, a pandemia da Covid-19 e a necessidade de atenção às políticas públicas básicas. Do outro, um ex-presidente que afirma ter sido absolvido em diversos processos relacionados à Lava Jato. Só para deixar claro: a Lava Jato é real, representando uma das maiores operações contra o crime organizado, descortinando irregularidades e atos de corrupção na Petrobras e na construção da usina nuclear Angra 3, dentre outras. Com mais de 200 solicitações de cooperação internacional, a operação apurou ramificações em diversos países, como Estados Unidos, Argentina, Chile, China, Colômbia, Costa Rica, Dinamarca, Equador, Espanha, França, Israel, Suíça, Itália, México, Reino Unido, Rússia, Angola, Venezuela, Hong Kong, Portugal e Peru, onde o ex-presidente Alan García tirou a própria vida ao ser investigado por envolvimento no esquema com a empresa brasileira Odebrecht. Enfim, foram bloqueados bilhões de reais depositados em diversas contas bancárias, com fatos confirmados pelos próprios criminosos (em colaborações premiadas) e pelas empresas envolvidas nos esquemas de corrupção (em acordos de leniência).

As mentiras são repetidas insistentemente até que virem verdades, nem que seja na marra ou com a complacência ou os meandros processuais do sistema de Justiça brasileiro. Aliás, as informações manipuladas (ou fake news) com fins eleitorais ou outros ganhos provenientes das disputas pelo poder recriam, inventam e negam os fatos, insistindo em repetir a única “verdade verdadeira”, ainda que visivelmente inexistente ou falaciosa. São inúmeros os casos recentes de fake news e de distorções manipuladas dos fatos. Denominador comum desta polarização insana, os valores basilares da política tradicional foram incorporados conscientemente de forma predatória, encontrando um terreno fértil para reprodução de hábitos individualistas, encarnados por meio de lideranças e de representantes políticos identificados com a aversão à democracia, ao público, à prática coletiva, ao espírito solidário, enfim, compatíveis com governos neoautoritaristas de direita (liberais populistas) ou de esquerda (revolucionários populistas), caracterizados por um sistema jurídico parcial baseado na ineficiência administrativa e na impunidade delitiva.

Mas, voltando à indagação inicial: a candidatura de Moro é salutar para a política e a democracia brasileiras? Corremos risco de viver em um Estado tecnocrático comandado por uma elite alheia aos reais problemas nacionais? Moro é um oportunista, um falso messias que se apresenta como o mais novo “salvador da pátria”?

Os questionamentos postos, além de especulativos, embora legítimos, só demonstram a fragilidade do modelo político atual que, como se disse, não admite uma interferência no modelo de poder dos donos da política tradicional. Qualquer ameaça às “regras do jogo” estabelecidas pela atual polarização merece repulsa e proibição imediata. Ao contrário do que se critica, Sergio Moro parece ter a força e a inteligência emocional necessárias para readequar democraticamente as regras do jogo político sem a atual interferência do crime organizado já infiltrado, num menor ou maior grau, nos poderes e instituições nacionais. De outro lado, ao contrário de seus oponentes, nunca se apresentou como um “salvador da pátria”, limitando-se a apresentar uma proposta concreta e plural – estabelecida a partir da análise dos problemas nacionais – como uma terceira opção para furar a blindagem estabelecida pela polarização hoje dominante.

Sem negar ou desmerecer sua trajetória ou passado como ex-juiz ou como ex-ministro, Moro se apresenta como pré-candidato ciente da dificuldade dos problemas a serem superados, bem como da necessidade – uma vez estabelecido um patamar mínimo de respeito às leis e à democracia – do estabelecimento de decisões plurais e colegiadas que deverão ser construídas conjuntamente com todos os segmentos da sociedade brasileira. Sem ódio e nem paixões, sem transigir com as garantias individuais e a liberdade de expressão (aliás, como já expressou publicamente várias vezes), certamente respeitará a Constituição Federal. Infelizmente, reflexo do viés de confirmação banalizado nas redes sociais, muitos enxergam e ouvem somente o que desejam, eliminando qualquer possibilidade de uma nova tentativa. Como lembra Ronald Dworkin em sua obra La democracia posible: principios para un nuevo debate político, “estamos diante de uma cultura política deplorável, mal equipada e preparada para o desafio de conseguir a justiça social e enfrentar a ameaça emergente do terrorismo. É necessário recuperar o bom sentido e construir umamoral política e pessoal que, com seus princípios comuns a todos, substitua o desprezo e o desdém pelo respeito recíproco e o debate útil”.

Em suma, se Lula e Bolsonaro, dentre outros governantes que já tiveram suas chances, não conseguiram estabelecer uma democracia material plena com oportunidades plurais (em igualdade de condições) para todos os brasileiros, haja vista que acabaram compondo com os grupos políticos tradicionais – sempre centralizados no comando do poder –, por que não dar uma oportunidade a Sergio Moro? Que, a partir de sua vivência na magistratura, com uma equipe que concilie competência, prática e honestidade, possa estabelecer novas estratégias políticas a serem adotadas independentemente da polarização apresentada com duas únicas alternativas possíveis. Cabe aos eleitores brasileiros, a partir da análise do comportamento político de cada candidato e as respectivas estratégias eleitorais adotadas – se baseadas em propostas propositivas ou se consolidadas em desqualificações, fake news e agressões –, dar uma nova chance ao Brasil. Como todos nós, um dia Mor(r)o, mas com o propósito e a esperança de ter visto um país onde se valorize a honestidade, a competência, o trabalho e o mérito.

Affonso Ghizzo Neto é doutor pela Universidade de Salamanca e idealizador da campanha “O que você tem a ver com a corrupção?”

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