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Existe liberdade religiosa quando se proíbe o proselitismo nas escolas?

intervalo escola
Alunos de escolas estaduais de Pernambuco têm aproveitado o intervalo para professar a fé cristã. (Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil)

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Após alguns meses de debate, entre audiências públicas e reuniões, a celeuma envolvendo o procedimento instaurado pelo Ministério Público de Pernambuco (MPPE) sobre os intervalos religiosos nas escolas públicas pernambucanas teve uma conclusão nada satisfatória: a divulgação da Nota Técnica Conjunta 01/2025, cujo conteúdo está longe do real entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre liberdade religiosa e proselitismo.

A polêmica, deflagrada após reunião para averiguar supostas denúncias de intervalos religiosos em escolas estaduais, teria atingido seu ápice se a audiência pública de 27 de novembro de 2024 não tivesse sido suspensa logo na primeira hora, em razão da agitação pela insuficiência de lugares no auditório para todos os cidadãos que compareceram ao local. Na sequência, nos dias 11 e 16 de dezembro, a discussão foi retomada em audiências públicas na Assembleia Legislativa de Pernambuco.

Nessas ocasiões, o promotor Salomão Abdo Aziz Ismail Filho afirmou que o MPPE teria sido provocado pelo Sintepe (Sindicato dos Trabalhadores em Educação do Estado de Pernambuco) para a fiscalização de possíveis abusos. Ele assegurou que o objetivo do órgão jamais foi proibir os intervalos religiosos. Tanto é que o próximo ato do promotor foi convocar as entidades envolvidas no debate, inclusive a Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE), para uma reunião no dia 12 de março, a fim de informar que não haveria qualquer regulamentação dos intervalos bíblicos, nem pelo MPPE, nem pela Secretaria de Educação, por se tratar de um direito fundamental dos alunos e por não haver os alegados excessos nos intervalos religiosos.

No entanto, contrariamente ao posicionamento do MPPE nas três audiências públicas e na reunião setorial, nas quais foi informado que não haveria limitação ao exercício do direito dos estudantes à liberdade religiosa, foi expedida a Nota Técnica Conjunta 01/2025, subscrita pelos Centros de Apoio Operacional de Defesa da Educação (CAO Educação) e da Cidadania (CAO Cidadania), bem como pelo Núcleo de Enfrentamento ao Racismo (GT Racismo), com orientações para os membros do Ministério Público em relação aos encontros religiosos nas escolas.

A orientação contra o proselitismo nas escolas públicas de Pernambuco vai de encontro a uma das finalidades constitucionais da educação, prevista no artigo 205 da Constituição Federal – o desenvolvimento integral dos educandos

O documento apresenta como fundamentação o artigo 19, inciso I, da Constituição Federal, que proíbe o Estado de estabelecer cultos religiosos ou igrejas e de embaraçar seu funcionamento. Contudo, quando a Nota orienta que as manifestações de fé dos alunos “não devem resultar em tentativas de persuadir outros estudantes a adotarem determinada religião”, em verdade, dificulta o livre exercício da liberdade de culto desses alunos.

Isto porque, em primeiro lugar, não é possível resguardar a liberdade religiosa dos estudantes sem resguardar seu direito ao discurso proselitista visando o convencimento do próximo, pois o proselitismo religioso faz parte da essência do pleno exercício da liberdade religiosa. Esse é o entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 2566, que reconheceu a constitucionalidade do discurso proselitista em rádios comunitárias: “A liberdade religiosa não é exercível apenas em privado, mas também no espaço público, e inclui o direito de tentar convencer os  outros, por meio do ensinamento, a mudar de religião. O discurso proselitista é, pois, inerente à liberdade de expressão religiosa”.

Isso significa que, de acordo com a interpretação dada pelo STF à Constituição Federal, o fato de a escola ser pública não gera qualquer limitação ao direito dos alunos de realizar os intervalos religiosos, convidar outros alunos e, em diálogo saudável e respeitoso, buscar persuadi-los a respeito de suas crenças. Assim, neste ponto, a recomendação da Nota Técnica contradiz o entendimento do STF.

Além disso, a orientação contra o proselitismo nas escolas públicas de Pernambuco vai de encontro a uma das finalidades constitucionais da educação, prevista no artigo 205 da Constituição Federal – o desenvolvimento integral dos educandos –, ao impedir o contato e, por consequência, a tão saudável e plural influência mútua quanto a gostos, posições políticas, culturais e religiosas.

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Afinal, como afirmou o ministro Luís Roberto Barroso em seu voto na ADI 5537, sobre a constitucionalidade da Lei 7.800/2016, de Alagoas, que estabelecia um programa análogo ao Escola Sem Partido: “A educação é, justamente, o acúmulo e o processamento de informações, conhecimentos e ideias que provêm de pontos de vista distintos, experimentados em casa, no contato com amigos, com eventuais grupos religiosos, com movimentos sociais e, igualmente, na escola”.

Essa questão não foi a única orientação em descompasso com o entendimento do STF na Nota Técnica Conjunta 01/2025. No item “b”, após a equilibrada diretriz de que “o exercício da liberdade de crença espontânea não pode interferir nas demais  atividades pedagógicas, devendo respeitar os demais atores da comunidade escolar”, a recomendação se excede ao dispor que se deve evitar “o uso de material escolar, equipamentos de som e instrumentos musicais, salvo para atividades pedagógicas”.

Ora, se os instrumentos musicais (que, inclusive, normalmente são trazidos pelos próprios alunos) forem utilizados pelos alunos nos encontros no intervalo, longe de áreas de salas de aula e de outros locais onde estão ocorrendo atividades pedagógicas regulares, ou até mesmo longe de outras reuniões, de forma moderada, sem excessos, qual é a irregularidade na situação?

A disposição é especialmente inadequada quando se considera que, nos argumentos da Nota, foi citado um julgado do STF no qual se admitiu uma limitação à liberdade religiosa em caso de uso imoderado de microfones, instrumentos musicais e som alto dentro de vagões de trem, situação inteiramente diversa quanto à voluntariedade dos envolvidos, à intensidade do som, ao local de uso etc.

Diante desse breve panorama, que não pretendeu abordar todos os pontos de tensão no documento, a grave constatação é que as orientações fornecidas por meio da Nota Técnica Conjunta 01/2025, subscrita pelo CAO Educação, CAO Cidadania e pelo GT Racismo do MPPE, estão em descompasso com a jurisprudência do STF sobre liberdade religiosa e, especialmente, sobre proselitismo religioso. Isso nos mostra que, apesar de o debate ter arrefecido no estado de Pernambuco, a necessidade de diálogo e de escrita sobre o tema está longe de chegar ao fim.

Gabriela Rocha Moura é advogada e coordenadora Estadual da Associação Nacional de Juristas Evangélicos (ANAJURE) em Pernambuco. É Pós-graduada em Direito Constitucional e tem MBA em Gestão de Organizações Religiosas e Terceiro Setor.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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