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Entre 2003 e 2010, vigorou no Brasil um pacto social de natureza conservadora. Em benefício das parcelas mais pobres da população, políticas de “renda mínima” foram implementadas com dois objetivos convergentes: combater a miséria e aumentar o mercado consumidor. Não houve esforço no sentido de reduzir desigualdades. Buscou-se, em vez disso, solução do tipo “ganha-ganha”, combinando-se o combate à pobreza com medidas de estímulo às grandes empresas. Combater a pobreza sem distribuir renda foi possível graças a taxas elevadas de crescimento econômico, sustentadas por aumento significativo no preço das commodities produzidas pelo Brasil, com destaque ao ferro e à soja. Criou-se, nessas condições, um pacto social aparentemente sólido, com atendimento às demandas reprimidas das classes proletarizadas e forte crescimento de alguns setores da economia: aqueles ligados ao agronegócio e à mineração, em função da demanda chinesa por matérias-primas; aqueles ligados à construção civil, em decorrência do PAC e do programa Minha Casa, Minha Vida; aqueles ligados à produção de carros e eletrodomésticos, em consequência do estímulo ao crédito e da manutenção de barreiras à importação. Setores industriais não protegidos por altas taxas de importação declinaram sensivelmente, por causa da valorização do real diante do dólar. O setor de serviços, por sua vez, expandiu-se de forma significativa, em função do crescimento da classe média.

O pacto começou a dar sinais de esgotamento quando forte redução no valor das commodities produzidas pelo Brasil, em combinação com outros fatores, gerou declínio na arrecadação. A deterioração das contas públicas forçou o governo a cortar gastos e reduzir isenções tributárias. Ao mesmo tempo, com o atendimento às demandas reprimidas de parcelas importantes da população, vieram à luz reivindicações mais complexas, dissociadas do simples acesso ao mercado consumidor. Essa é a origem das manifestações de junho de 2013. A demanda por produtos deu lugar à demanda por direitos. A situação deteriorou-se a partir de 2015, com o crescimento do desemprego e com a retração do crédito. Antigas demandas voltaram à tona, sem que as novas tenham sido abandonadas. Se em 2013 o governo lidava com problemas gerados pela ascensão social, agora precisa lidar também com dificuldades geradas pelo recrudescimento da pobreza e da miséria em contexto de severa crise fiscal. No plano empresarial, além das dificuldades causadas pelo fim de isenções e pela contenção do crédito, há também dificuldades causadas pela retração no consumo doméstico, que apenas não são piores em virtude da desvalorização do real, que está tornando menos acessíveis produtos importados. Ao lado disso, há problemas gerados pela retração do mercado de obras públicas, não apenas por causa da desaceleração do PAC, mas também em consequência da inevitável instabilidade ocasionada pela Operação Lava Jato.

O governo reage às criticas lançando em meio ao debate uma cortina de fumaça

Contra esse pano de fundo, a corrupção pode ser compreendida como uma agravante. O governo seria mal avaliado mesmo sem denúncias ou comprovação de desvios. A corrupção apenas aumenta a impressão de que entre a população e o governo há um fosso: enquanto a população empobrece e as empresas fecham, integrantes do governo loucupletam-se, indiferentes à crise enfrentada pelo país. Se o governo fosse considerado probo, talvez a crise econômica fosse melhor tolerada. Medidas de ajuste seriam, então, aceitas com paciência. Sendo o governo considerado corrupto, as medidas de ajuste tendem a ser consideradas hipócritas. Essa percepção está na raiz da grave crise enfrentada pelo governo. Não é uma simples crise de credibilidade. Trata-se de crise de credibilidade em meio à tormenta. Num dia de sol, tolera-se a omissão ou a imperícia do capitão. Durante dura tempestade, um capitão omisso ou incompetente é inevitavelmente odiado e corre o risco de ser lançado ao mar se não se ajustar rapidamente.

O governo reage às criticas lançando em meio ao debate uma cortina de fumaça. Bradando contra moinhos de vento, desvia o foco dos problemas reais. É auxiliado, nesse jogo, por lideranças populares cooptadas, no bojo de um suposto “patrimonialismo de esquerda”. Movimentos sociais outrora aguerridos parecem não se dar conta de que representantes ou intermediários do empresariado ocupam no governo posições centrais desde 2003. Por isso agora bradam contra o impeachment, alegando que a “direita” estaria procurando retornar ao poder. A direita, no entanto, esteve, ao longo dos últimos anos, no coração do poder.

Algumas evidências nesse sentido podem ser apontadas: a reforma agrária parou; populações indígenas têm sido atropeladas por grandes obras; o uso de agrotóxicos cresce de forma descontrolada; a Amazônia está sendo corroída pela pecuária, pela extração de madeira, por grandes obras e pela mineração; nossas cidades foram destruídas pelo estímulo inconsequente ao uso do automóvel particular; a indústria alimentícia tem devastado a saúde pública impunemente; a taxa de lucro dos bancos cresceu de forma ininterrupta ao longo dos últimos anos, apesar da crise que atinge todos os outros setores da economia desde 2008.

É urgente, diante desse quadro, a construção de uma autêntica agenda de reformas. Para tanto, é preciso, em primeiro lugar, denunciar a apropriação indébita da agenda de esquerda pelo PT, acionada sempre que o governo se encontra encurralado. A agenda de reformas de que o Brasil precisa deve levar a sério a natureza patrimonialista do Estado. Deve combater privilégios, com autêntico espírito republicano. Deve dar resposta à aspiração de segmentos crescentes da população por ampla renovação no âmbito do parlamento, quebrando-se o monopólio dos partidos sobre o sistema representativo. Deve dar preeminência à agenda ecológica. Deve questionar a mistificação que subjaz ao ideário de crescimento econômico ilimitado. Deve ter presentes os problemas que pesam sobre os segmentos mais vulneráveis da população – em particular nas periferias das grandes cidades, assoladas pela violência, pela precariedade do transporte público e por graves falhas no saneamento básico. Deve recolocar em pauta a reforma agrária, não apenas sob a ótica da distribuição de terras, mas também sob a perspectiva da reformulação dos métodos de cultivo, privilegiando-se a agricultura livre de agrotóxicos, com vistas ao abastecimento do mercado interno. Deve admitir, ainda, que ascensão social duradoura requer educação pública de qualidade em grande escala, de Roraima ao Rio Grande do Sul, por meio de investimentos federais, conforme tem defendido há anos o senador Cristovam Buarque. Deve alimentar, além disso, uma cultura de responsabilidade e solidariedade, dando sentido plenamente concreto à noção de cidadania. Deve, por fim, combater o fetiche do Estado, dando maior espaço a iniciativas sociais autônomas que permitam à população sentir-se responsável pelo Brasil, assim como uma família sente-se responsável pela própria casa.

Felipe Dittrich Ferreira e Marcos Vinícios de Araujo Vieira são sociólogos.
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