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A liberdade de pesquisa como direito inalienável do ho­­mem não é absoluta, tem seus limites e deve ser con­­ciliada com outros direitos e liberdades do mesmo nível.

Acordamos, indistintamente todos os vivos, muito menores que um dia nos imaginamos nos enxergar num vislumbre da dimensão de nossa própria insignificância. Criou-se a perspectiva de vida artificial!!! E nós humanos, ainda mais, pois concebidos bem próximos da perfeição, impressionava-nos a consciência do diferencial único que nos inseria numa indisfarçável escala hierárquica da natureza e que nos permitia um lócus, ou ao menos um horizonte, ligeiramente superior. Percebíamos melhor esse legado evolutivo a partir do nosso pensar e agir. O intelecto, esse notável e magnífico traço distintivo, é que permitia a aproximação de nós, humanos, à imagem e semelhança de um ser supremo. A reta ratio que tanto perturbou a filosofia e a ciência, expressão cunhada no pensamento universal inspirado nos escritos do holandês Hugo Grócio, ainda no século 16, que, sem questionar a consubtancialidade de um Deus – na qual, como homem de fé, acreditava –, permitia dispensá-lo na razão de uma ordem de Direito e de Estado, hoje nos arranca do comodismo das explicações religiosas e nos lança num ceticismo laico sem precedentes. Esse já não seria mais o jogo da vida? É que também se criou a ideia da inteligência artificial. Que fardo a carregar! Como pode o homem, nessa quadra histórica da evolução, arvorar-se à condição de superioridade que, a rigor, no plano ético, jamais ocupou? Não há dúvida, porém, que essas reflexões iniciais remetem a uma nova ordem de valores e preocupações no plano das relações do Direito e da Justiça. Aqueles que até agora se ocupavam com os juízos de racionalidade moral nas relações humanas – e, mais, entre os seres vivos em geral – devem dirigir um olhar muito mais atento de caráter um tanto restritivo, ou ao menos de controle de velocidade, ao primado da liberdade da ciência. E nesse tema, é preciso lembrar que o princípio da autodeterminação informativa genética (recht auf geninformationelle sebstbestimmung) apresenta uma consequência essencial que se mostra às vezes aparentemente oposta ao avanço científico, que é o direito de "não saber". Em outra quadra e em outro contexto, já escrevi que, no núcleo da ética cívica da sociedade moderna, se acha o reconhecimento da dignidade humana como fator de condução da moralidade dos experimentos científicos, não se permitindo instrumentalizar os seres vivos em geral. Em outras palavras, a dignidade exige não instrumentalizar as pessoas, nem danificá-las, nem alterá-las em seu rastro genético, mas apenas beneficiá-las, seguindo a linha kantiana de reputar a humanidade como fim último positivo das intervenções humanas. Daí, a construção estrutural, muito mais adiante, do princípio da responsabilidade, pelo sempre crítico pensador Hans Jonas, segundo o qual, quem não assume o cuidado de um ser vulnerável e valioso, podendo fazê-lo, comporta-se de forma imoral. Não foi por acaso que o sequenciamento genômico chegou aonde chegou, ou que a hermenêutica pretoriana (STF), após acalorados debates envolvendo toda a sociedade brasileira, consagrou o direito limitado a sua utilização no desenvolvimento celular. Ora, como já pontuei, a liberdade de pesquisa como direito inalienável do homem, da mesma forma que outras liberdades, não é absoluta, tem seus limites e deve ser conciliada com outros direitos e liberdades do mesmo nível, para concluir, que os direitos fundamentais constituem esse limite infranqueável, sem prejuízo das matizações que exijam determinadas situações concretas. Na epígrafe que abre um de meus textos, tomo de Francesco D’Agostino a lapidar reflexão: "El problema no está por consiguiente tanto en aquella diferencia entre el descubrimiento científico (siempre neutral) y su aplicación (buena o mala), está en la propia dimensión del descubrimiento que pode establecer una lógica de proyecto de alteración del destino humano". Resta-nos, sempre, o consolo da prima causa. Este mistério a que se rende o saber humano em todos os tempos, jamais será capaz de ser contido ou explicado nos tubos de ensaio dos sofisticados experimentos de laboratórios, nem sintetizado ou controlado nos computadores de ponta desse nosso mundo artificial.

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Denise Hammerschmidt, juíza de direito substituta em 2º Grau, mestre em Direito, é especialista em Bioética pela Cátedra da Unesco.

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