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A escrita manual está desaparecendo do cotidiano dos jovens, mas o que isso revela sobre o desenvolvimento cerebral e o papel da psicomotricidade nos primeiros anos de vida?
Ao longo de mais de 5.500 anos, a humanidade se comunicou e aprendeu por meio da escrita manual, uma prática agora sob ameaça entre os jovens da geração Z, nascidos entre 1995 e 2012, também conhecidos como nativos digitais.
Recentes pesquisas indicam que cerca de 40% dos estudantes dessa faixa etária relatam dificuldades em escrever à mão de forma funcional e legível, revelando não apenas uma mudança cultural, mas um possível prejuízo ao desenvolvimento cognitivo.
Nos últimos anos, educadores, neurocientistas e pais têm observado uma mudança silenciosa, mas profunda, nos hábitos de aprendizagem da geração Z. Crescidos em um mundo digitalizado, muitos desses jovens dominam com destreza telas sensíveis ao toque, navegam com fluidez entre aplicativos e produzem conteúdo em velocidade impressionante. No entanto, algo essencial parece estar se perdendo nesse processo: a habilidade de escrever à mão.
É cada vez mais frequente os relatos de profissionais da educação que revelam que adolescentes da geração Z produzem textos em formato de fragmentos e bullets, em vez de parágrafos elaborados, o que indica dificuldade em estruturar e desenvolver argumentos com clareza.
Mais do que uma prática escolar tradicional, a escrita manual está profundamente ligada ao desenvolvimento neurológico e cognitivo, sobretudo nos primeiros anos de vida. A dificuldade crescente que jovens da geração Z enfrentam para escrever de forma legível, ortograficamente correta e com encadeamento lógico de ideias levanta um alerta sobre as bases que sustentam o pensamento estruturado.
A psicomotricidade como alicerce do pensar
Para compreendermos a importância da escrita, é preciso voltar à base: a infância. É nela que se constroem os fundamentos motores, sensoriais e simbólicos que permitirão à criança, mais tarde, organizar ideias, resolver problemas e se comunicar com clareza. A psicomotricidade, campo que integra o desenvolvimento motor à constituição do eu e do pensamento, é peça-chave nesse processo.
A pediatra húngara Emmi Pikler (1902–1984) destacou-se por reconhecer que o movimento livre e espontâneo é a base do desenvolvimento físico e mental da criança. Segundo ela, "Movement is the first language of the brain", ou seja, o movimento é a linguagem primordial que molda o cérebro.
Antes mesmo de formar letras no papel, a criança experimenta o mundo com o corpo. Rabisca, corre, pula, constrói, desmonta. Cada gesto, cada movimento, cada brincadeira aparentemente simples, mas que são bastante complexas, está ajudando o cérebro a organizar informações, formar redes neurais, criar padrões e consolidar aprendizagens.
O traçado da escrita, nesse contexto, não é um fim em si mesmo, mas consequência de uma série de habilidades que se desenvolvem em espiral: coordenação motora fina, percepção espacial, ritmo, atenção, memória e representação simbólica. É o brincar que, cientificamente, sempre se provou como uma das atividades mais importantes para o desenvolvimento humano.
O que está em risco com a perda da escrita?
Escrever à mão ativa áreas do cérebro diferentes das envolvidas na digitação. Quando escrevemos manualmente, o cérebro é estimulado a organizar o pensamento, selecionar vocabulário e estruturar frases com mais clareza.
Escrever à mão envolve coordenação motora fina, ritmo perceptivo, memória sequencial e planejamento linguístico, habilidades que se desenvolvem a partir das experiências psicomotoras da infância.
A escrita cursiva, em especial, exige um encadeamento motor que favorece a fluidez do raciocínio.
Ao perder essa habilidade, a geração Z pode estar comprometendo também sua capacidade de refletir, planejar e argumentar
A ausência ou fragilidade da escrita manual pode ter impactos mais amplos do que se imagina. Crianças que pulam etapas psicomotoras ou não são suficientemente expostas a atividades manuais podem apresentar dificuldades não só na linguagem escrita, mas também na construção do pensamento lógico e criativo. A linguagem, afinal, é o que estrutura o pensamento. E escrever é uma forma complexa de dar forma à linguagem.
Diante deste cenário tão atual, é urgente que escolas e famílias reconheçam que o desenvolvimento do pensamento começa no corpo. O excesso de telas desde a primeira infância e a antecipação de aprendizagens formais têm impactado negativamente a importância de experiências sensoriais e motoras.
O brincar livre, a manipulação de materiais, a exploração do espaço e as interações humanas presenciais precisam ser valorizados como partes estruturantes do currículo educacional e do cotidiano da criança e do adolescente.
Garantir que as crianças desenvolvam bem suas habilidades psicomotoras nos primeiros anos não é um luxo pedagógico, mas uma necessidade para a formação de sujeitos pensantes, autônomos e criativos.
Se queremos uma geração capaz de inovar, questionar e construir soluções para os desafios do século XXI, precisamos garantir que ela saiba, antes de tudo, escrever. Com o corpo, com a mente e com sentido.
Diana Quintella é mestre em Administração de Empresas, MBA em Gestão Empresarial e graduada em Psicologia. É diretora operacional da MiniMe - Educação Infantil Aprendiz da infância.



