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O escarcéu do site WikiLeaks trouxe à baila uma discussão interessante sobre o uso que o Estado faz do segredo. Esse é tema que já foi estudado por vários pensadores, como Bobbio, por exemplo, com a conclusão de que essa relação sempre foi essencial para a arte de governar.

Concluiu-se também que enquanto governos ditatoriais tendem a depender do segredo, poderes democráticos o usam como exceção. As ditaduras vivem do segredo para garantirem que o poder não se perca nem diminua (daí o uso frequente da censura, por exemplo). Governos democráticos fazem do segredo a exceção porque a participação popular e o debate necessário à democracia virtuosa implicam a discussão dos motivos que animam o poder – daí a necessidade de mecanismos como a liberdade dos meios de comunicação e de opinião, bem como a livre educação pública e universal. O uso do segredo só se justifica quando a garantia de outros princípios democráticos demanda a sua existência. Aí o problema.

Governos democráticos em arroubos ditatoriais ou governos ditatoriais travestidos de democráticos podem abusar do uso do segredo: no Executivo, quando o que explicam os porta-vozes não é exatamente o que anima as decisões; no Legislativo, algumas assessorias de imprensa se especializam em desmentir o evidente, a tergiversar ou a maquiar a realidade; e também no Judiciário, onde o uso de um linguajar esotérico enseja a construção do segredo. Ora, a linguagem técnica, os cálculos e tabelas de impossível compreensão e os procedimentos burocráticos complexos e, às vezes, secretos (como nas investigações criminais sendo feitas longe dos olhos e do controle dos acusados, de seus advogados e dos súditos em geral), por certo afastam o jurisdicionado da verdade e garantem o segredo para o Estado.

Nesse apego ao segredo surge então a preocupante figura do "duplo Estado". O governo é democrático, pois qualquer um, guardadas restrições de segurança, pode, por exemplo, ver e criticar uma sessão de debates políticos ou de julgamento colegiado em tribunais. Mas há também dentro desse mesmo governo atuações secretas da segurança, investigações policiais e militares escondidas, espionagem, sem contar ainda, pelo pior, os conchavos políticos, o lobby perverso, a negociação de interesses escusos. Tudo isso, por óbvio, deve ser mantido em segredo, pois desse segredo depende a mantença do poder governamental. Essa porção corresponde ao segundo Estado, invisível, que se esconde atrás das instituições democráticas e se manifesta especialmente ativo no plano internacional, onde as relações políticas são menos sujeitas a um poder central.

A atuação do site WikiLeaks identifica essa realidade. Ao apresentar informações de relatórios ditos "secretos" de muitos governos, o site demonstrou como as relações políticas internacionais são pouco conhecidas e se baseiam comumente mais em razões de Estado do que em regras jurídicas ou morais. Veio à tona um universo subterrâneo de informações dadas por espiões, fontes incógnitas e relatórios em geral, produzidos sem o conhecimento dos seus objetivos e que sustentam as opções dos governos por essa ou aquela linha de atuação. Isso não parece condizer com a atuação de um Estado dito democrático. E justamente por isso, por serem democratizantes, as propostas similares àquelas do Wikileaks são muito importantes – desde que não violentem os demais princípios democráticos, quando então serão criminosas e passíveis da resposta estatal adequada.

Todavia, mais preocupante é a polvorosa diplomática daí originada, pois, violados nos seus segredos, governos menos democráticos podem tomar medidas drásticas de conservação de seus arcana imperii. O controle da internet é a consequência lógica, como ocorre com a perturbadora pretensão americana de legislar sobre o Facebook e o Skype, canais de fácil disseminação de informação na net. Embora pareça ser necessária uma regulação desses meios e da própria mídia em geral, pois a liberdade de imprensa e o sigilo de fonte dependem de existência jurídica (já se disse que um direito sem um instrumento de proteção que o garanta é mera expectativa de direito), o problema reside justamente no sentido dessa regulação. Se for uma definição de garantias e, também, de limites ao poder, é importante e necessária. Todavia, se confundir-se com a simples formalização do controle e intervenção estatal, será apenas lançar trevas sobre a luz – o que, para Bobbio, é uma interessante diferenciação entre os regimes democráticos e ditatoriais: enquanto naqueles há luz ameaçada constantemente por trevas, neste, a regra são as trevas constantemente ameaçadas pela luz.

Guilherme Roman Borges, mestre e doutorando em Filosofia e Teoria Geral do Direito, na USP, é professor de Economia e Política Internacional da Universidade Positivo. Rui Carlo Dissenha, doutorando em Direitos Humanos, na USP, é advogado e professor de Direito Penal e Direitos Humanos na Universidade Positivo

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