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Sob o manto da doutrina pela "não vio­­lência" institucional milhões de pessoas comuns, inocentes, que neste instante tra­­fegam desarmadas e indefesas pelas ruas podem acabar vítimas de uma ins­­tituição violenta e pouco preparada

O governador Roberto Requião acaba de tomar uma das mais acertadas decisões na área de Segurança Pública. A partir de agora, as polícias Militar e Civil estão impedidas de transportar vítimas de confrontos armados para os hospitais ou prontos socorros em viaturas das corporações, sendo a responsabilidade de competência do Siate. A questão é saber como agir em cidades onde as condições para o atendimento são deficitárias. A medida passou a valer depois que cinco suspeitos foram alvejados em confronto com PMs e, segundo a própria policia, morreram a caminho do hospital. Assim, o que se pretende é dar as vítimas da violência não só o direito a defesa, mas a preservação da vida. Retirar as vítimas do local do crime não passa de uma simulação para criar dificuldades às investigações e posteriormente se transformar em álibi aos policiais.

O jornalista Caco Barcellos, em seu livro Rota 66 – A História da Polícia que Mata, traça um relato minucioso de 3.546 processos de pessoas mortas em tiroteios com a polícia militar de São Paulo. Foram sete anos de pesquisa. Neste confronto de informações o autor concluiu que 65,4% das vítimas assassinadas pela PM eram inocentes, sem nenhuma ocorrência em delegacias ou processos na Justiça, enquanto 34,6% "estiveram envolvidas em algum tipo de crime". Mas o que chama atenção no livro é um fato no mínimo curioso. A quase totalidade dos registros em boletins de ocorrência afirma que "os suspeitos estavam armados, reagiram e após serem feridos foram levados com a vida ao hospital" mas não resistiram aos ferimentos. Ora, a medida do governador Requião vem exatamente combater esse simulacro, uma vez que qualquer alteração no ambiente do crime compromete o trabalho da perícia. Segundo Barcellos, esse gesto aparentemente humanitário (de socorrer a vítima) transforma os hospitais em verdadeiros esconderijos de cadáveres. "Se os PMs dizem a verdade", afirma o jornalista, "estamos diante de um caso de completa incompetência médica e hospitalar. Dos 3.546 processos de pessoas feridas em tiroteio com a polícia que analisei e que deram entrada nos prontos socorros, nenhuma foi salva pelos médicos de plantão".

O livro, antes que os adeptos da teoria que "bandido bom é bandido morto", em nenhum momento defende qualquer tipo de abrandamento de pena ou clama pela impunidade dos marginais. Simplesmente expõe o quanto esta realidade é distorcida para servir interesses de uma parcela de policiais, advogados, políticos e até integrantes do Poder Judiciário. Sob o manto da doutrina pela "não violência" institucional milhões de pessoas comuns, inocentes, que neste instante trafegam desarmadas e indefesas pelas ruas podem acabar vítimas de uma instituição violenta e pouco preparada – exceto para aplicação da força bruta. A preocupação do jornalista é mostrar como a polícia age na repreensão ao crime, além de querer entender por que milhares de inocentes são mortos anualmente sem dever absolutamente nada à Justiça. A sociedade, no entanto, só se dá conta do que acontece quando a violência chega à sua porta.

Caco Barcellos escancara as vísceras de um sistema em estado de putrefação latente, fo­­mentado pela corrupção, pela extorsão e gerido por métodos que incentivam a pratica da tortura, da violência e da morte. Toda esta mixórdia resulta numa sociedade cada vez mais insegura, amedrontada, acuada, com temor não é só pelos bandidos, mas inclusive àqueles que são pagos para protegê-la.

O ato do governador Roberto Requião não irá diminuir os índices de violência, muito menos conscientizar as forças policiais do seu verdadeiro papel, mas certamente cria um instrumento de controle que poderá salvar milhares de vidas inocentes. Aliás, só quem já sentiu na própria carne a perda de alguém nestas condições é capaz de avaliar. A regra que ainda prevalece por estas terras de Pindorama pode ser resumida pelo desabafo de uma mãe diante do Conselho de Justiça Militar do Estado de São Paulo formado por um juiz civil, dois majores e dois tenentes da PM que, em junho de 1981, absolveu os policiais que mataram seu filho: mais uma vez "venceu a brutalidade dos covardes". Até quando?

René Ruschel é jornalista

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