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A Gazeta do Povo noticiou recentemente duas notícias assustadoras. A primeira delas informava que 576 pessoas (sim, quinhentas e setenta e seis!) tinham sido assassinadas no primeiro trimestre de 2010, em Curitiba e região metropolitana. A segunda notícia dizia que, em alguns bairros da cidade (Pilar­­zinho, CIC, Uberaba, Cajuru, Sítio Cercado), os líderes do tráfico de drogas decretaram toque de recolher a fim de mostrar para a população quem de fato manda na região. Qual a reação das autoridades e da população a essas notícias?

Em relação à primeira, a apatia impressiona. Alguma manifestação de rua? Não. Algum protesto em nome da paz? Não. Algum juiz vindo a público se manifestar em defesa do Estado de Direito? Não. Alguma mãe entrevistada lamentando a morte de seus filhos? Não. Rigorosamente nada! Quinhentas e setenta e seis pessoas assassinadas, a grande maioria de homens jovens da periferia, e parece que nada, nada se passou. Se apenas uma dessas mortes ocorresse em local nobre da cidade e vitimasse gente também nobre, o escândalo estaria feito. Quinhentas e setenta e seis mortes e nada! Não é preciso ser muito inteligente para captar a mensagem: as vidas humanas têm valores totalmente diferentes, dependendo do local onde se vive e da classe social. Não sou especialista no assunto. Não tenho condições de fazer diagnósticos nem propor soluções para assunto tão complexo, mas não consigo deixar de me indignar com o fato de que estamos literalmente jogando gente no lixo e não estamos nem aí para isso.

No que diz respeito ao problema do toque de recolher, estamos diante de uma trágica trivialidade: a ausência do Estado em regiões periféricas, onde impera a lei da violência privada de criminosos. O descaso é total. Não há polícia, não há postos de saúde, não há local de lazer, não há políticas sociais de proteção a jovens em situação de risco, não há escolas decentes ou, quando essas coisas existem, são inadequadas, precárias e, como mostram os números, totalmente ineficazes. O Estado é uma ficção. As autoridades, por um lado, negam o fato; por outro, incitam as pessoas a não se submeterem ao toque de recolher. O que deveriam fazer? Pagar para ver? Arriscar a própria vida e a de seus filhos para resistir a um absurdo que deveria ser evitado pelo Estado e seus agentes? Todos os especialistas sobre o assunto dizem mais ou menos a mesma coisa: a repressão policial, ainda que parte da equação, tem se mostrado absolutamente insuficiente para resolver o problema; além disso, é preciso investir urgentemente em infraestrutura urbana, transporte, luz, saneamento, postos de saúde, escola, acesso à justiça, policiamento civilizado (isto é, respeitador dos direitos humanos), enfim, entregar a essa população aquilo que lhe é de direito.

Essas duas notícias deveriam ser suficientes para que os prefeitos de Curitiba e os da região metropolitana, juntos com o governador do estado, fizessem uma reunião de urgência para enfrentar esses problemas definitivamente e com seriedade. A morte de centenas de jovens e a submissão da população aos desmandos do tráfico deveriam ser bem mais do que suficientes para que as nossas autoridades deixassem de lado seus discursos vagos e vazios, parassem de fazer proselitismo político às custas de vidas alheias e assumissem de uma vez por todas a condição de homens públicos sérios, cuja obrigação fundamental é zelar pela vida e pelo bem-estar dos cidadãos.

No Brasil, essa estranha república, temos o péssimo hábito de incensar as autoridades públicas, de tratar prefeitos, governadores e políticos em geral como uma espécie de nobreza. É chegada a hora de dizermos a esses senhores, em alto e bom som, que eles são servidores públicos, escolhidos por nós, pagos por nós, e que têm a obrigação de tomar as medidas necessárias para resolver problema tão trágico. Ninguém os obrigou a ocupar tal posição. Agora que estão aí, que governem.

Renato Perissinotto é professor de Ciência Política da UFPR

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