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Estudantes comemoram o centenário do Partido Comunista Chinês em Hong Kong
Estudantes comemoram o centenário do Partido Comunista Chinês em Hong Kong| Foto: EFE

A China é um país milenar governado por inúmeras dinastias imperiais desde há mais de 2 mil anos antes de Cristo até primórdios do século 20. No decorrer desse tempo o confucionismo, o taoísmo e o budismo influenciaram bastante a conduta dos chineses. Após a instauração da República da China, em 1912, muitas ocorrências importantes se sucederam, tais como a guerra contra os japoneses, os diversos conflitos socias manipulados pelos senhores da guerra, a conflagração civil protagonizada pelo Kuomintang contra o Partido Comunista e o surgimento da República Popular da China.

No transcorrer do período imperial a educação sínica apresentou características peculiares congruentes ao singular cenário social e político que a condicionava. De modo resumido, pode ser dito que os processos educativos familiar e escolar visavam incutir nos jovens a veneração pelos pais, mestres e imperadores. Por meio do ensino religioso a escola, prioritariamente, objetivava preservar a unidade nacional, manter as tradições e preparar os jovens para o cumprimento de suas obrigações diárias. Era uma formação destinada a instaurar a obediência e o conformismo, as virtudes mais apreciadas pelos setores dominantes de então.

A república fundada em 1912 manteve o nacionalismo e o autoritarismo, mas a seu lado apareceu uma novidade: o liberalismo. Cabe dizer que o nacionalismo diz respeito a uma forma de consciência coletiva que envolve coesão, senso de unidade e identificação dos indivíduos com o Estado. O autoritarismo é concebido como um regime que acentua a autoridade do governo e centraliza o poder político nas mãos de uma só pessoa ou determinado órgão constituído por um pequeno grupo de indivíduos, e coloca em posição subalterna as instituições representativas. Por sua vez, o liberalismo é uma concepção que enfatiza o individualismo, isto é, a ideia de ser humano como um ente solitário, fechado em si mesmo, enclausurado em sua subjetividade, cujos interesses e aspirações devem ser colocados acima de tudo, um vivente dotado de autonomia plena que não pode sofrer qualquer tipo de coação. A valorização dos direitos é um de seus motes; a democracia representativa é preferida em detrimento da participativa, e a tripartição do poder constitui a forma da organização do Estado.

O nacionalismo, marca indelével dos chineses, começou a aparecer no século 17, quando a China era vista como um “império celestial” e os demais Estados considerados como entes subalternos.

Conflagrações e pilhagens enfraqueceram esta visão e, em decorrência, o destacado sentimento de superioridade então dominante caminhou rumo ao desaparecimento. Em meados do século passado, após a guerra civil, o Partido Comunista passou a combater todas as expressões separatistas emergentes. Também nesta época o nacionalismo aumentou acentuadamente em função do antimanchuísmo, do anti-imperialismo e do movimento maoísta, visando a construção de um novo sujeito nacional.

No momento atual, de pandemia global, países ocidentais levantaram uma hipótese conspiratória sobre as origens da Covid-19 que incriminava a China, e que foi interpretada pelos chineses como um ataque étnico. O aumento da pressão ocidental possibilitou a Pequim se apresentar como defensora de todos os interesses chineses, revigorando o sentimento nacionalista e favorecendo os laços entre a sociedade e o Estado; este passou a reagir firmemente contra a intenção humilhadora e imperialista, e a estimular de modo reiterado a propagação do orgulho nacional baseado nas conquistas coletivas do país, resultantes de sacrifícios coletivos e do trabalho árduo da população chinesa.

A ideologia autoritária, por sua vez, é bem mais antiga que o nacionalismo, haja vista que tem estado presente na história sínica desde a implantação dos regimes imperiais até os dias que correm.

Ela não despareceu nem no período republicano entre 1912 e 1949. Com efeito, apesar da escolha do presidente do país, da formação de um parlamento, do estabelecimento de um Poder Judiciário e da criação de uma Constituição que previa um regime democrático do povo, comandado pelo povo e para o povo, a verdadeira autoridade permaneceu concentrada nas mãos dos generais que controlavam as regiões provinciais ou obtinham a lealdade daqueles que as dirigiam. A partir da década de 50, os integrantes do Kuomintang retiraram-se para Taiwan e os comunistas se instalaram no governo.

Desde então, é o Partido Comunista que aplica a ideologia autoritária de forma ostensiva e efetiva em sua estrutura e funcionamento. No país inexistem sufrágio universal, alternância partidária, liberdade de expressão e acesso irrestrito à internet. Também não há sindicatos livres, Judiciário independente e igualdade real perante a lei. O Estado não pratica a tolerância religiosa e costuma empregar expedientes repressivos. À população são assegurados apenas os direitos de estudar, trabalhar e viajar.

Quanto ao liberalismo, sabe-se que ele emergiu junto com a fundação da república, em 1912.  Nos anos que se seguiram houve a tradução e divulgação de obras de pensadores liberais, cujos preceitos repercutiram entre os chineses. Posteriormente surgiram intelectuais que escreveram sobre o liberalismo e manifestações favoráveis como o Movimento da Nova Cultura e o Movimento Quatro de Maio. Apesar desse avanço, ele sofreu diversos abalos causados pelo enfrentamento do militarismo japonês e a repercussão do movimento comunista. Em consequência, na década de 30, muitos chineses começaram a assumir a crença na importância do autoritarismo para a nação.

O liberalismo foi perdendo força e passou a ser visto, primeiramente, como uma concepção censuradora do autoritarismo; e, logo a seguir, como uma ilusória criação burguesa capaz de produzir o enfraquecimento do país.

Após o falecimento de Mao Tsé-tung, o liberalismo começou a emergir novamente. De fato, seus preceitos voltaram a circular no âmbito social devido às atrocidades ocorridas sob o comando do Partido Comunista. Muitas pessoas, particularmente as mais jovens, passaram a se interessar por ele, e seguidores do humanismo marxista buscaram uma aproximação. A compreensão atual é de que o liberalismo se instalou muito bem no setor econômico da sociedade.

O encontro dessas três ideologias contribuiu bastante para moldar o comportamento dos chineses no decorrer do tempo, particularmente em relação ao aparecimento de tipos específicos de cidadãos, por meio da sua inculcação na educação formal, realizada na escola, e na educação informal, realizada fora da escola.

Assim sendo, é possível constatar a presença de uma classificação peculiar. Por meio das duas formas de educação a ideologia autoritária é impregnada na grande maioria dos chineses, que se inclinam a reagir como cidadãos apáticos. A impregnação do nacionalismo ao lado do autoritarismo está contribuindo para a manutenção de um conjunto significativo de cidadãos que podem ser alcunhados como ufanistas. Vale ressaltar que há dez anos ocorreu uma reformulação no ensino de cidadania para atender à finalidade de incutir nos alunos um forte sentimento de unidade nacional.

A partir dos últimos quatro anos emergiu um movimento urbano integrado por jovens e denominado Guochao, caracterizado pela valorização e procura de marcas chinesas. Tais jovens, por meio de gestos e condutas apropriadas, expressam em público o orgulho pelo país e a crença de que as demais nações do mundo desejam conter a China, um singular momento de autoconfiança cultural. Este movimento tem por base o aumento da oferta de bens e serviços de alta qualidade, enaltecedores das empresas nacionais, e da disponibilidade de produtos vistos como tão ou mais prendados que os elaborados por empresas alóctones, uma clara predileção pelo made in China. Ademais, muitos chineses já realizaram manifestações de boicote a estabelecimentos forasteiros que se desviaram das normas estabelecidas para as empresas locais; a Liga da Juventude Comunista, em apoio ao Partido Comunista, já praticou boicotes a mercadorias estrangeiras.

Em Hong Kong, a ideologia liberal foi introduzida nas escolas em 2012 sob o título de “estudos liberais”. Permaneceu durante alguns anos até ser substituída pela nova nomenclatura, intitulada “cidadania e desenvolvimento social”. Em Pequim, como já foi mencionado, o movimento liberal vem se manifestado desde a fundação da república. Com a forte ajuda do liberalismo, formou-se um grupo de cidadãos insurgentes que demonstraram seu poder duas vezes. A primeira foi a manifestação na Praça da Paz Celestial a favor da liberdade de imprensa, da democratização do Partido Comunista e do combate à corrupção, nos anos 80. A segunda demonstração aconteceu entre 2019 e 2020, em Hong Kong, na forma de um movimento provocado pelas crescentes ameaças às liberdades políticas, especialmente em torno do projeto de lei de extradição proposto pelo governo chinês.

Sob a influência do liberalismo e do nacionalismo, no contexto da globalização, os estabelecimentos escolares também estão tentando formar cidadãos globais. De fato, a globalização vem favorecendo bastante as atividades econômicas do país. Assim sendo, a educação cívica praticada tanto em Pequim quanto em Hong Kong e Macau passou a incorporar a ideia de que a cidadania, além de ser localmente ativa, precisa ser internacionalizada para favorecer o afloramento de múltiplas identidades. Apesar de as preocupações patrióticas estarem em primeiro plano, a vigorosa e recorrente competição do mundo interdependente levou as autoridades e os educadores chineses a se preocuparem com um ensino cívico favorável ao intercâmbio com outras regiões do mundo. Sem dúvida ele faz parte da estratégia política estatal, amplamente acolhida pelo povo, cujo orgulho nacional se encontrava adormecido, destinada a conduzir o país a uma posição de liderança no concerto das nações.

Derradeiramente, cabe apontar que, além da interferência dessas ideologias na formação dos cidadãos chineses, constata-se a existência de uma atual e bem-sucedida administração de algumas vilas urbanas localizadas nas cidades de Guangzhou, Wuhan e Shenyang por parte dos próprios aldeões que nela residem, voltada para o bem-estar econômico e social de todos os moradores locais.  Ela é decorrente da adoção de diferentes estratégias adotadas por eles para preservar seus interesses individuais e coletivos frente a uma fragmentada política urbana praticada pelos dirigentes sínicos, e mostra a existência de um processo social formador de cidadãos comunitários que completam a lista dos tipos anteriormente relatados.

Antonio Carlos Will Ludwig é professor aposentado da Academia da Força Aérea, pós-doutorado em Educação e autor de “Democracia e Ensino Militar” e “A Reforma do Ensino Médio e a Formação Para a Cidadania”.

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