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Imagem ilustrativa.| Foto: Bru-nO/Pixabay

O presidente Jair Bolsonaro vetou recentemente projeto de lei que facilitava o acesso a medicamentos orais contra o câncer. O Projeto de Lei 6.330/2019 foi amplamente discutido e tinha sido aprovado com maioria esmagadora de votos de deputados e senadores no início de julho. Tínhamos comemorado como vitória de pacientes e médicos comprometidos com o melhor cuidado.

O texto em discussão alteraria a Lei dos Planos de Saúde (Lei 9.656/1998) e tornaria obrigatória a cobertura para os antineoplásicos de uso oral – como já é obrigatória a cobertura para medicamentos injetáveis. A proposta dispensaria a exigência atual de que esses medicamentos sejam individualmente avaliados pela ANS, com a produção de um dossiê para cada indicação, num processo lento, burocrático, pouco transparente e sem critérios econômicos definidos.

Os argumentos usados para o veto foram de que a nova lei contrariaria o interesse público por deixar de levar em conta aspectos como previsibilidade, transparência e segurança jurídica aos atores do mercado e toda a sociedade civil. A resistência ao projeto de lei vinha de pessoas ligadas às operadoras de planos de saúde, que alegavam que a proposta teria como consequência o “inevitável repasse” de custos adicionais aos consumidores. O lobby feito por pessoas e entidades ligadas às grandes operadoras funcionou. Posteriormente, o presidente ainda justificou que foi obrigado a vetar o projeto de lei porque o autor do projeto de lei, o senador Antônio Reguffe, “não teria apresentado fonte de custeio” e, caso o sancionasse, alegou que “incorreria em crime de responsabilidade”.

É inacreditável que um projeto de lei discutido por muitos anos, de forma responsável e técnica com a sociedade, por profissionais, entidades, técnicos, deputados e senadores e, posteriormente, aprovado de forma inquestionável seja alvo desse veto com argumentos simplórios.

A obrigatoriedade da avaliação periódica de cada indicação de cada novo medicamento oral para a ANS cria uma insegurança jurídica tremenda. E uma insegurança aos pacientes e familiares pior ainda. Por lei, a ANS define uma lista de consultas, exames e tratamentos, denominada Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde, que os planos de saúde são obrigados a oferecer. Uma das obrigatoriedades, por exemplo, é a quimioterapia sistêmica. Essa lista é revista a cada dois anos. Por exemplo, se um novo equipamento de exames de imagem é lançado no mercado, a ANS tem dois anos para avaliar se os planos de saúde deverão ou não cobrir os exames, após consulta à sociedade médica, aos pacientes e aos próprios planos de saúde. Essa metodologia é adequada, e funciona bem para inovações tecnológicas disruptivas, como por exemplo cirurgias robóticas, novas técnicas de radioterapia, ou terapias focais ablativas por radiofrequência.

Ao igualar a obrigatoriedade de cobertura de medicamentos contra o câncer independentemente da forma de administração (injetável ou por comprimidos), o ganho em transparência e segurança jurídica seria evidente. Um paciente com câncer avançado, que tem tratamento disponível no mercado definido como eficaz e seguro pela agência responsável por isso (a Anvisa) e que tem por lei garantia de cobertura pelo seu seguro de saúde, deveria ter acesso rápido a essa terapia. A definição de cobertura não pode ficar na dependência da via de administração do medicamento.

Os custos em oncologia têm aumentado significativamente, em grande parte devido ao advento da imunoterapia (que é injetável, e de cobertura obrigatória após aprovação pela Anvisa, por sinal). Novas terapias orais também têm custo relativamente alto, e não são medicamentos disponíveis para compra em farmácias convencionais. Assim, do ponto de vista prático, um medicamento contra o câncer sem a inclusão pela ANS no seu rol acaba não podendo ser utilizado hoje – a não ser que o paciente tenha condições financeiras de bancar ou que o plano de saúde faça uma cobertura “extra-rol”, espontaneamente ou forçado judicialmente. Por outro lado, o impacto orçamentário de todos os medicamentos orais antineoplásicos para os planos de saúde é incrivelmente menor que o dos medicamentos endovenosos novos e atuais.

Risível e ignorante é o argumento presidencial de que o senador proponente não teria apresentado fonte de custeio. Como se houvesse verbas públicas envolvidas. Dá a impressão de que o presidente nem leu o projeto de lei. O custeio viria dos próprios planos de saúde, entidades privadas e bancadas pelos próprios usuários, que em 2020, aliás, tiveram diminuição global de custos devido à redução no uso de serviços médicos gerais, como cirurgia e exames, em razão da pandemia.

Ainda há tempo para derrubar o veto presidencial. A sociedade, representada pelos congressistas, precisa demonstrar inteligência e discernimento para deixar de lado interesses e lobbies de grandes operadoras, e buscar o interesse pelo melhor cuidado aos pacientes com câncer, que não podem esperar. Porque a doença não espera.

André Deeke Sasse é oncologista, fundador e CEO do Grupo SOnHe – Oncologia e Hematologia, professor de pós-graduação na FCM-Unicamp, coordenador do Departamento de Cancerologia da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Campinas (SMCC), membro titular da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), da Sociedade Americana de Oncologia Clínica (ASCO), da Sociedade Europeia de Oncologia (ESMO) e do Grupo Cooperativo Latino-Americano de Pesquisa (Lacog).

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