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Nossa consciência e o livre arbítrio rejeitam embargos a qualquer opção; o instinto de sobrevivência, porém, nos aconselha a evitar a utilização abusiva de certas alternativas – com a repetição, perdem o caráter nefasto e acabam por se tornar possíveis, até palatáveis. A frequência torna tudo barato, banal, admissível, natural.

Suicídio e guerra, por exemplo, são soluções extremas, inapeláveis e incogitáveis. O mesmo com relação a golpes de Estado. Não existem suicídios aceitáveis, a não ser em casos de doenças terminais, nem guerras justas. O golpe de Estado é a ruptura da ordem constitucional, caos. O regime democrático admite tanto a duplicação como a interrupção de mandatos – desde que sancionadas por maiorias ou seus representantes legítimos.

A facilidade e a irresponsabilidade com que é aventada a interrupção do mandato de Dilma Rousseff são um desrespeito à República

Nas últimas seis décadas este observador anotou duas crises político-militares em que a paranoia, a radicalização e a reverberação desrespeitaram a imperiosa quarentena a ser imposta ao recurso do golpe. Em novembro de 1955 e março de 1964, as menções a golpe eram tantas e tão intensas que desgraçadamente acabaram por se autoconfirmar e materializar. Em ambas como golpe preventivo, pretexto tão aberrante e estúpido como o golpe de Estado sem pretexto.

Nas crises pós-ditadura – a atual é uma delas –, felizmente evaporou-se o ingrediente militar, afugentado o fantasma de quartelada. Mesmo assim, mantêm-se outras assombrações igualmente aterrorizantes. A facilidade e a irresponsabilidade com que é aventada a interrupção do mandato da presidente Dilma Rousseff são um desrespeito à República e suas instituições.

Acusados estão os presidentes das duas casas do parlamento – portanto, o comando do Legislativo. Isso é grave, gravíssimo, sobretudo porque ambos se servem ilegitimamente de uma amalucada reforma constitucional para distrair a sociedade com uma enxurrada de emendas desconexas, deletérias, impróprias e contraditórias.

Contra a chefia do Executivo – o governo – correm suposições, rumores, fofocas, nenhuma evidência. A tentativa de confundi-las é viciosa. Tal como a histeria do principal partido governista tentando desqualificar a imperiosa missão oposicionista com o infamante estigma de golpismo.

Espremidos entre o dever de reportar os incríveis desdobramentos da Operação Lava Jato e a ansiedade que domina grande parte da sociedade com o teor das suas revelações, jornais e jornalistas são facilmente levados a vulgarizar um desfecho extremo que conviria tirar de circulação para não suscitar recorrências e imitações.

O país dos golpes – incruentos ou justificados – desapareceu, não existe mais. Todos os golpes se parecem – são cruéis, injustificados. Mesmo como figura de retórica. Se o sistema político não consegue contornar impasses com a esperada agilidade, em algum momento aparecerão as condições e, sobretudo, as lideranças capazes de superá-los.

Golpe é uma hipótese maldita – para não ser aventada nem mencionada.

Alberto Dines é jornalista.
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