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Platão e Aristóteles no centro da “Escola de Atenas”, de Rafael Sanzio.
Platão e Aristóteles no centro da “Escola de Atenas”, de Rafael Sanzio.| Foto: Wikimedia Commons

A grande base, o início do pensamento filosófico é a tentativa de buscar respostas para o que são os seres (entenda-se “seres” por coisas existentes, sejam seres vivos ou inanimados). Dessa busca vem a conhecida pergunta fundamental da filosofia: o que é a coisa em si? Há mesmo uma área, uma disciplina, por assim dizer, da filosofia que trata exatamente dessa questão, o que é o ser das coisas. Importa estabelecer aqui que coisas não são apenas os seres tangíveis (cachorro, lua, pedra), mas também intangíveis (amor, quadrado – a forma geométrica –, primo). A disciplina da filosofia de que falávamos se chama ontologia.

A ontologia tenta estabelecer o que um objeto sob consideração é pelo que ele é; o que é único em seu todo e que, assim sendo, só nele se encontra; o conjunto do que lhe constitui e que não se encontra em outros diferentes seres/coisas/objetos. É dessa forma, por sinal, que somos capazes de chegar à definição de algo. Aqui adianto uma questão fundamental a respeito da qual seguirei tratando no texto: o que se busca na tentativa de entender um ser é muito mais que meramente sua função, embora a inclua.

Para não seguirmos em abstrações ou filosofês, vamos colocar tudo isso de maneira bastante prática: um liquidificador é um liquidificador. Não vamos aqui debater o que faz de um liquidificador um liquidificador; nem buscar uma definição para liquidificador. O importante é que tenhamos estabelecido entre nós que é possível dizer o que é um liquidificador e, se quisermos, também é possível encontrarmos uma definição satisfatória para liquidificador. Mais ainda: tendo tudo isso bem claro, também entenderemos que usar um liquidificador para triturar alimentos sólidos não faz de um liquidificador um multiprocessador. O simples fato de utilizarmos o primeiro para executar uma função (ou mesmo funções) do segundo não faz com que aquele seja este. Fosse assim, não conseguiríamos nos comunicar.

Foi sem conhecimento dessas questões que nosso pobre amigo João Incauto inovou na sua sociedade com um pensamento revolucionário. Ele simplesmente passou a usar seu liquidificador como um multiprocessador e passou a chamá-lo de multiprocessador. Se ele tivesse ficado com isso apenas para si, nada de mais teria ocorrido, mas ele passou a se comunicar com suas visitas (que chamava à sua casa para noites de preparação e degustação de jantares) tratando o liquidificador por multiprocessador. As pessoas (limitadinhas, coitadas) não entendiam onde estava o multiprocessador quando ele as pedia que o pegassem. Elas olhavam e não viam nenhum multiprocessador. Ele sempre tinha de ir até o armário, pegar o multiprocessador e esfregar em suas caras. Caras, a propósito, sempre de grande espanto quando elas o viam pegando o liquidificador. Já iam achando que ele estava louco, mas ele conseguia lhes explicar a tempo seu pensamento revolucionário: as coisas eram o que se queria que fossem pelas funções que as pessoas se lhes arbitrassem executar.

As pessoas começaram a entender, mas João Incauto cansou de usar o multiprocessador. Ele agora usaria a jarra. Dessa vez ele foi até mais radicalmente inteligente: arrancou as lâminas do liqui..., melhor dizendo, do multiprocessador. Agora, quando as visitas dos jantares chegavam e ele lhes pedia para pegarem a jarra, elas não conseguiam encontrar a jarra. Conseguiam ver muitas coisas, dentre elas o velho multiprocessador, mas nenhuma jarra. João tinha de ir até o armário e lhes esfregar a jarra na cara, mostrando-lhes, inclusive, que nem havia parte alguma dedicada a qualquer tipo de trituração ali; ou seja, era uma jarra e ponto. Logo elas entendiam: o pensamento revolucionário de João novamente em ação.

Imagino que seja fácil perceber que, além da impossível substituição do ser do objeto pela mera alteração da sua função (e vice-versa), há ainda a questão da impermanência. Se tudo é qualquer coisa, bastando que se altere sua função, então nada é coisa alguma. Invertendo Parmênides: o que não é, é! Pode dormir com o estrondoso barulho desse absurdo (no sentido lógico mesmo), pequeno gafanhoto João Incauto.

Essa é uma bela de uma confusão demoníaca que se vai estabelecendo nas sociedades. Um papagaio é irmão de Maria, se for adestrado para exercer a função de irmão de Maria. Um ajudante de cozinheira é arquiteto, caso comecem a lhe pedir para fazer desenhos de imóveis e ambientes e ele os faça. Uma motoristo é um enfermeira, se elx exerce essx funçãx quando limpa um corte e faz um curativx nx dedx dx filhx. Uma pedreirx, se conversa e aconselha outrx pessox nx ônibus, é um psicológx. Ux ser humanx nascidx com útero, trompas e seios é pai se ux empresx de cosméticxs assim afirma nux propagandx. Espero que você consiga dormir, Joãx Incautx.

Marcos Pena Jr. é economista e escritor.

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