
Ouça este conteúdo
A Procuradoria-Geral da República (PGR) protocolou, no último dia 14 de julho, suas alegações finais na Ação Penal 2.668, requerendo a condenação do ex-presidente Jair Messias Bolsonaro e de outros sete réus. O documento, assinado pelo procurador-geral da República, Paulo Gustavo Gonet Branco, aponta uma série de crimes pelos quais Bolsonaro deve ir a julgamento, incluindo organização criminosa armada, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado, dano qualificado e deterioração de patrimônio tombado.
Segundo a PGR, a ação penal descreve a “estruturação e atuação de organização criminosa” que teria operado entre meados de 2021 e o início de 2023. O Ministério Público Federal sustenta que o grupo visava romper a ordem democrática no Brasil, minar a alternância de poder nas eleições de 2022 e enfraquecer o exercício dos poderes constitucionais. A denúncia se baseia em manuscritos, arquivos digitais, planilhas, discursos e trocas de mensagens.
A presunção de inocência, pilar do Estado Democrático de Direito e ponto de partida de qualquer julgamento, incluindo o de Bolsonaro e outros acusados, estabelece que ninguém pode ser considerado culpado sem provas cabais e irrefutáveis
A PGR defende que os crimes de golpe de Estado (artigo 359-M do Código Penal) e restrição do livre exercício dos poderes constitucionais (artigo 359-L) estão configurados, enfatizando que esses delitos se consumam na modalidade tentada, e por isso Bolsonaro deve ir à julgamento. Ressalta ainda que a proteção legal visa à integridade do sistema democrático e do exercício legítimo do poder político – não à figura pessoal do governante –, incluindo a possibilidade de autogolpe.
Além disso, o órgão aponta Bolsonaro como principal articulador e beneficiário das ações golpistas. Segundo a acusação, houve instrumentalização do aparato estatal para disseminar “narrativas inverídicas”, provocar instabilidade social e defender medidas autoritárias. Cita-se, como exemplos, a "live" de 29 de julho de 2021, discursos de 7 de setembro de 2021 e a reunião ministerial de 5 de julho de 2022, todos apontados como tentativas de descredibilizar o sistema eleitoral e incitar ações contra as instituições. Também é mencionada a “omissão qualificada” após as eleições de 2022 e a “minuta do golpe” encontrada.
A colaboração de Mauro Cid foi reconhecida como útil para o esclarecimento global dos fatos, ajudando a revelar a estrutura hierárquica e a divisão de tarefas da suposta organização criminosa. Contudo, o MPF também aponta omissões e resistências nos depoimentos, sugerindo benefício restrito, com redução de 1/3 da pena, sem perdão judicial.
Apesar da contundência das alegações finais, uma análise detida do documento revela lacunas importantes. Muitas das hipóteses acusatórias ainda carecem de elementos materiais capazes de comprovar de forma cabal a ocorrência dos crimes tal como narrados na denúncia.
A existência de uma “organização criminosa armada” e a “tentativa de golpe de Estado” é sustentada pela PGR com base em “unidade de propósito” e “divisão de tarefas”. No entanto, tais conclusões se apoiam em comunicações e reuniões cuja interpretação pode ser controversa. Mensagens trocadas em aplicativos, apresentadas como provas de articulação criminosa, foram classificadas pelas defesas como conversas desconexas ou informais – pontos que a própria PGR se esforça em rebater, evidenciando o grau de subjetividade da acusação. A tênue linha entre articulação política e crime exige provas inequívocas, que nem sempre se encontram nos autos.
A chamada “minuta do golpe”, peça central da acusação contra Anderson Torres, é outro ponto polêmico. A defesa sustenta que o documento “já circulava no Google”, tese rebatida pela PGR, mas que evidencia uma controvérsia legítima sobre sua origem e efetiva utilização. A ausência de elementos formais, como cabeçalho ou assinatura, reforça o argumento de que se trata mais de um rascunho sem valor jurídico do que um plano concreto.
Especial preocupação surge da própria avaliação da colaboração premiada de Mauro Cid. O documento da PGR admite superficialidade e omissões sobre os fatos mais graves, além de citar indícios de comportamento incompatível com o dever de boa-fé. O uso de perfis falsos e a adoção de versões seletivas enfraquecem a robustez da delação como prova.
A presunção de inocência, pilar do Estado Democrático de Direito e ponto de partida de qualquer julgamento, incluindo o de Bolsonaro e outros acusados, estabelece que ninguém pode ser considerado culpado sem provas cabais e irrefutáveis, colhidas em respeito ao devido processo legal. A dúvida razoável, quando presente, deve conduzir à absolvição, pois o direito prefere absolver um culpado a condenar um inocente.
No caso do julgamento de Bolsonaro, persiste uma dúvida razoável sobre a materialização das condutas imputadas ao ex-presidente. Condenar alguém com base em inferências, interpretações subjetivas e provas contestáveis afronta o núcleo do devido processo. Os fatos apurados não convergem para a tentativa de golpe; ao contrário, apontam para encontros políticos desprovidos de qualquer plano efetivo para suprimir a ordem democrática.
No entanto, o que se vê é um cenário onde a condenação de Bolsonaro em seu julgamento parece pré-determinada por parte do Supremo Tribunal Federal, em postura que transborda os limites da jurisdição para adentrar no campo da perseguição política.
Marcelo Aith é advogado criminalista, doutorando em Estado de Derecho y Gobernanza Global pela Universidad de Salamanca - ESP, mestre em Direito Pena, Latin Legum Magister (LL.M) em Direito Penal Econômico, especialista em Blanqueo de Capitales pela Universidad de Salamanca.



