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Justiça mastodôntica, processualismo ciclópico e formalismo interpretativo canhestro
| Foto: Pixabay

Em um excelente artigo publicado no O Globo de 9 de julho de 2019, com o título “E a cocaína?”, o jurista e professor de Direito Constitucional da Fundação Getúlio Vargas Joaquim Falcão ilumina as mazelas do excessivo processualismo e formalismo interpretativo de nosso sistema judiciário.

Ele começa contando a história do julgamento de um traficante, preso em flagrante com uma carga de cerca de mais de 30 quilos de cocaína. Ora, quem carrega 30 quilos de cocaína (valendo cerca de R$ 1 milhão à época) não é um “passador” comum e deve ter, como de fato teve, dinheiro para levar o caso até o STF. Lá, a defesa alegava que a autoridade coatora havia cometido um “ato duvidoso diante da lei”. Como a palavra de um criminoso é, quase que invariavelmente, tomada com extrema seriedade e complacência pelo STF, o caso “caminhava rotineiramente para a soltura e absolvição do traficante preso”, segundo narra Falcão.

Foi quando um dos ministros perguntou: “E a cocaína? O que fazemos com os mais de 30 quilos apreendidos? Se não houve crime, há de se devolver a seu legítimo proprietário: o traficante. O Estado não poderia confiscá-la com base em eventual equívoco processual da autoridade coatora”, completa Falcão. O professor não relata como prosseguiu o debate, mas eu imagino que, se Gilmar Mendes estivesse presente, o autor da incômoda pergunta deveria ter ouvido alguns insultos, temperados com a mais rasteira grosseria.

Falcão usa esta história para fazer uma analogia com a Lava Jato, hoje extinta pelo trabalho conjunto de Jair Bolsonaro, do “seu” procurador-geral Augusto Aras e alguns manjados ministros do STF. São de Falcão as seguintes perguntas: “O que se faz com as provas provadas? Com os dólares do apartamento do ex-ministro Geddel Vieira? Com a mala de dinheiro de Rocha Loures? Com as contas não declaradas da Suíça? Com ilícitos recursos já devolvidos? Com as confissões confessadas? Perícias confirmadas? A quem devolver? À sociedade?”

(Por enquanto, a Lava Jato já recuperou R$ 4,3 bilhões do enorme montante de roubos de grandes corruptos, o que também parece enfurecer alguns ministros do STF, Gilmar Mendes à frente.)

São perguntas pertinentes e absolutamente sérias, mas que os irresponsáveis detratores e destruidores da Lava Jato no Executivo, na PGR e no STF fingirão não ouvir e com certeza ignorarão. Este é o Brasil atual, construído pelo que de pior nele existe: o Centrão do Congresso, o Executivo sequestrado pelo Centrão, a PGR transformada em órgão de governo e o STF sequestrado por aquilo que J.R. Guzzo chamou de “Facção-Pró-Crime”.

Sobre o “formalismo interpretativo” associado ao “processualismo” mastodôntico que permite ao acusado gastar fortunas (certamente parte do dinheiro roubado) com advogados bilionários que conseguem levar o processo ao Supremo e – através de jogo manjado – fazer o processo cair na Segunda Turma do STF, já fiz uma analogia em artigo publicado nesta Gazeta: a luneta de Galileu.

Galileu não inventou a luneta. Esta foi inventada por Hans Lippershey, um fabricante de lentes dos Países Baixos. Galileu importou um exemplar e, trabalhando duro, conseguiu aperfeiçoá-la para os fins astronômicos de seu interesse. Com sua luneta aperfeiçoada, Galileu descobriu quatro satélites de Júpiter: Io, Europa, Ganimedes e Calisto, todos girando em volta do maior planeta do Sistema Solar. Além de outras descobertas astronômicas importantes, Galileu concluiu que a Terra não estava parada no centro do universo, com todos os demais astros, Sol inclusive, a girar em torno dela. Este modelo, concebido por Aristóteles e adotado como verdade teológica pela Igreja, estava, concluiu Galileu, absolutamente errado.

Agora, imagine-se um caso hipotético. Galileu, ao importar uma luneta de Lippershey, cometera um “ato duvidoso diante da lei”. Como ele seria julgado na Itália, pode-se supor que seria condenado. Mas seus achados, feitos com a luneta aperfeiçoada, seriam mantidos e escritos na história.

Mas suponha o leitor que Galileu fosse julgado pelo “formalismo interpretativo” brasileiro de que fala Falcão, como se fosse no STF de hoje. Poderia até ser condenado, como Moro o foi. Mas será que a nossa corte julgadora (o STF, por exemplo) iria negar os achados de Galileu, por conta do seu ato duvidoso diante da lei? Teríamos de recuar à Idade Média e adotar de volta o sistema geocêntrico de Aristóteles? Condenaria o STF os livros escolares que narrassem as descobertas de Galileu? Proibiria ou anularia pesquisas e desenvolvimentos espaciais que levassem em conta que a Terra gira em torno do Sol e não o contrário? Teríamos de voltar a ignorar as quatro luas de Júpiter? Por mais absurdo que estas perguntas soem (e como soam!), penso que sim. Nosso formalismo interpretativo não só nos leva a entregar os mais de 30 quilos de cocaína ao traficante inocentado, a anular as condenações da Lava Jato, como a negar os achados de Galileu feitos através de uma luneta, por ter sido ela supostamente obtida irregularmente.

Pois não foi exatamente isso o que o STF deu de presente a Lula? Não só condenou Moro, acusando-o de “suspeito” – e liberando Lula para voltar a assombrar o Brasil consciente –, como proibiu que o massivo acervo de provas provadas, de confissões confessadas e de perícias confirmadas volte a ser usado contra o Grande Larápio. A analogia é perfeita! O aparente absurdo da analogia posta acima decorre apenas do ridículo formalismo interpretativo do STF, que desserve a nação e serve bem ao crime e aos criminosos.

Mude-se a expressão “descobertas de Galileu” por aquele massivo acervo contra Lula levantado pela Lava Jato, pela Receita Federal e por organizações internacionais, agora proibido pelo STF de Gilmar, Lewandowski e Cármen Lúcia de ser usado contra Lula, como se não mais existisse. Mude-se, ainda, o nome Galileu Galilei por Sergio Moro e a mesma comédia absurda aflora. Mutatis mutandis, é tudo a mesma coisa. Este é o retrato de uma Justiça a favor da injustiça e da impunidade. O ridículo dela é apenas um perverso detalhe.

Joaquim Falcão também se ocupa do gigantismo do nosso sistema judiciário, com suas quatro instâncias judiciais e uma infinidade de recursos protelatórios à disposição de quem tem dinheiro para percorrê-las: “O excesso do devido processo legal é uma doença. Inchaço. Patologia. É o processualismo. Este processualismo tem efeito reverso. É como o muito receitar de antibióticos. O corpo cria defesas. De tantos incidentes processuais, a corrupção cria também defesas”. Sem dúvida, o sistema judiciário brasileiro é descomunal, ciclópico, excessivo. Insignificante em termos de qualidade jurisdicional, mesmo quando comparado a países bem menos expressivos.

Só o Brasil tem uma Justiça do Trabalho e uma Justiça Eleitoral. Nem as democracias consolidadas, como EUA, Canadá, França, Alemanha ou Itália, têm tais justiças. Uma Justiça do Trabalho significa varas de primeira instância, tribunais regionais e um (faraônico!) Tribunal Superior do Trabalho em Brasília. Associado a ela temos o Ministério Público do Trabalho. Já li que a Justiça do Trabalho, sozinha, consome mais recursos públicos do que todo o sistema judiciário norte-americano. Some-se a isso a Justiça Eleitoral (outra jabuticaba, praticamente só dá no Brasil), o Ministério Público Eleitoral e ver-se-á que o Brasil expende uma fortuna em recursos do contribuinte com coisas que as grandes democracias dispensam. E os sistemas judiciários dessas grandes democracias funcionam, coisa que não podemos dizer do nosso.

Só instâncias judiciais temos quatro, ainda outra jabuticaba. Aqui, bandido com muito dinheiro (mesmo que produto de roubo) pode utilizar parte do furto para percorrer as quatro instâncias, chegando ao STF, com numerosos recursos protelatórios à disposição, o que leva o crime à prescrição, ou defere o julgamento final para as calendas gregas, aquelas datas que nunca chegam.

Sumarizando: em 2019, o Judiciário brasileiro custava aos contribuintes 1,5% do PIB. Nos Estados Unidos, o Judiciário custa em torno de 0,15% do PIB; na Itália, 0,19%; e na Alemanha, 0,32%. Em média, as despesas judiciárias nos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) chegam a apenas 0,5% do PIB. Esta absurda diferença talvez até se justifique, dado que países como os Estados Unidos, Alemanha e França são muito pobres, comparados ao Brasil...

Bandido endinheirado, no Brasil, tem a absoluta certeza de que nunca pagará por seus crimes; o STF está aí para garantir a impunidade de corruptos endinheirados. Os exemplos são inúmeros: Lula, Zé Dirceu, Antonio Palocci, Delúbio Soares, Alberto Youssef, Eduardo Cunha, João Vaccari Neto, Leo Pinheiro, Marcelo Odebrecht etc.

Uma única vez concordei com Gilmar Mendes, o mais destacado e mortal inimigo das instituições de combate à corrupção do Brasil. Na época, ele era chefe da Advocacia-Geral da União de FHC e colecionava derrotas no STF. Cada vez que perdia, convocava a imprensa e vomitava bílis à frente das câmaras. Numa dessas ele declarou que “o Brasil era um manicômio judiciário”. Tempos depois, talvez para se vingar das derrotas sofridas (Freud explica!), FHC indicou Gilmar ao Supremo. Fez um grande mal à Justiça! A nação honrada jamais esquecerá esta injúria que FHC fez ao Brasil. A partir da chegada de Gilmar Mendes ao STF, o que já parecia mesmo um manicômio judiciário não deixou mais dúvidas, graças à sua contribuição definitiva à loucura judicial brasileira. Depois disso, jamais concordei com este ministro/empresário, sistemático libertador de bandidos de alto coturno.

José J. de Espíndola é engenheiro mecânico, mestre em Ciências em Engenharia, Ph.D. pela Universidade de Southampton (Inglaterra), doutor honoris causa pela UFPR e professor titular aposentado da UFSC.

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