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A decisão dos tribunais gaúchos de retirar as cruzes de suas dependências foi acertada, embora atrasada. Se o Estado é laico, uma cruz em um tribunal está afirmando que esse tribunal necessariamente julga levando em consideração os valores próprios ao cristianismo (bem: qual cristianismo: católico? Calvinista? Anglicano? Ortodoxo?). Não importa se os cristãos são "maioria": em matéria de crença íntima, o tamanho da população e o peso do Estado não têm (e não podem ter) autoridade: brasileiros que sejam budistas, umbandistas, ateus, agnósticos, xintoístas, muçulmanos, judeus, positivistas são tão brasileiros quanto os cristãos, mas como cidadãos devem submeter-se apenas às leis da República Federativa do Brasil e não também às regras de alguma religião.

Convém esclarecer: o Estado "laico" não tem nenhuma religião, isto é, que não favorece nenhuma crença religiosa específica; assim, ele não é ateu, cristão (católico, protestante etc.), umbandista, budista, espírita ou qualquer outra religião. Com isso, separa-se a cidadania da crença individual: não é necessário crer em uma religião específica para ser cidadão. Com isso, cada brasileiro pode participar da vida política e social sem medo de ser discriminado ou perseguido por suas crenças íntimas; o que importa é se respeita as leis dirigidas a todos os cidadãos.

Historicamente, no Brasil colônia (1500-1822) e no Brasil Império (1822-1889) havia religião oficial: a católica. Apenas os católicos eram cidadãos e, inversamente, os cidadãos tinham de ser, necessariamente, católicos; isso equivalia a dizer que a participação nos negócios públicos exigia a conversão ao catolicismo. (Mesmo assim, a Igreja Católica era estreitamente controlada, no regime do padroado.) Todas as outras religiões eram malvistas e/ou criminalizadas: os protestantes eram segregados e as religiões afrobrasileiras eram tratadas como caso de polícia. Ora, percebendo com clareza que esse sistema gerava hipocrisia oficial e humilhação pessoal – em suma, desmoralização generalizada –, a República foi proclamada em 15 de novembro de 1889 buscando, entre outras coisas, mudar esse quadro: a partir de 7 de janeiro de 1890 o Estado tornou-se laico.

A primeira Constituição republicana, de 1891, foi a única de fato laica: garantia as liberdade de culto, de expressão, de associação e afirmava a neutralidade religiosa do Estado; em momento algum referia-se a divindades. Assim, permitiu-se à sociedade brasileira a liberdade para as mais variadas manifestações religiosas e culturais. É digna de nota a atitude ambígua da Igreja Católica: comemorou o fim do controle do Estado, mas reclamou da perda dos privilégios; ou seja, queria agir sobre a sociedade sem restrições, usando o Estado como instrumento de imposição de suas crenças. Daí um projeto de recuperação do Estado pela Igreja, elaborado em 1916 por dom Sebastião Leme e realizado em 1930, quando Getúlio Vargas tomou a Presidência da República e fez da Igreja uma das bases de seu poder.

Mudando de perspectiva: a laicidade também evita a violência simbólica. Símbolos, palavras, sinais podem ser tão ou mais violentos que ações físicas. Minimizar o potencial ofensivo que um símbolo em um local público pode ter para os cidadãos é não entender nem a cidadania nem o ser humano (e um dos melhores meios de iniciar conflitos sociais).

A atual exigência de laicidade do Estado, cobrando em particular a retirada de cruzes de órgãos públicos, é duplamente salutar. Por um lado, simplesmente recupera um movimento histórico do Brasil que busca afirmar a liberdade individual e coletiva. Note-se: não há nada de "tradicional" na presença dessas cruzes, exceto se pensarmos que a imposição autoritária das crenças é uma "tradição nacional" e que o país não possui nenhuma tradição de luta pelas liberdades. Por outro lado, evita a violência simbólica: afinal, se a cruz é "somente um símbolo", ele pode ser trocado por qualquer outro: a crescente, o ohm, a bandeira do arco-íris, a menorá.

Gustavo Biscaia de Lacerda, doutor em Socio­logia Política pela UFSC, é sociólogo da UFPR.

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